Como ‘red pills’ e coaches atraem adeptos na esteira da crise da masculinidade
- Author, Shin Suzuki
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter,
Ao entrar no Instagram de Thiago Schutz, o “coach de masculinidade” acusado de ameaçar com violência uma humorista, há três posts afixados e destacados. Um deles tem a seguinte fala: “Mulher de valor, valor mesmo, ela se adapta ao estilo de vida do homem. Ela se adapta à caminhada do homem. Então ela faz parte disso. Não é o contrário.”
Em pouco mais de dois anos do perfil Manual Red Pill, criado por Schutz na rede social, foram centenas de postagens que estimulam o controle masculino ou giram em torno de uma desconfiança hostil e obsessiva em relação às mulheres.
Há frases como “seja firme, fale com tom de voz grave, trate-a como uma menina, exerça uma autoridade protetora e comande” ou “toda vez que você abre informações que não deveria para uma mulher, ela poderá identificar suas fraquezas e jogar sujo contra você”.
Schutz (cujo sobrenome, na verdade, é Schoba), de 34 anos, entrou no conhecimento do grande público depois de reagir com intimidações via internet a uma paródia feita pela atriz e roteirista Livia La Gatto.
Ela satirizou um vídeo em que o coach defende não ceder a uma mulher que sugere cerveja durante um encontro. Na história narrada por Schutz em um podcast, o homem preferia beber Campari e deveria ser inflexível sobre seus gostos.
Irritado, o coach mandou uma mensagem à humorista dizendo que, se a paródia não fosse retirada do ar, seria “processo ou bala”. Ainda tentou fazer dez ligações pelo Instagram a La Gatto — mais tarde ela registraria um boletim de ocorrência na polícia.
A repercussão tornou-o conhecido como “o coach do Campari” (em nota, a empresa do aperitivo italiano expressou repúdio e declarou que se solidariza com as mulheres envolvidas nesse caso de “misoginia e ameaças”).
Schutz não respondeu aos contatos da BBC News Brasil. Em um vídeo de justificativas, afirmou que “não é bala no sentido literal” e que “seria incapaz de dar um tiro ou de ferir alguém”.
O caso evidenciou um aumento da visibilidade de movimentos masculinistas —que alegam serem prejudicados pelo “tratamento privilegiado para a população feminina” no mundo atual — e que, não raro, invocam desprezo, uma postura adversarial ou distanciamento de mulheres.
São pensamentos de linhas como redpill (a propagada pelo coach), MGTOW (Men Going Their Own Way, ou homens tomando seu próprio caminho, em inglês) e incels, que floresceram a partir da década passada em cantos obscuros e anônimos da internet (fóruns conhecidos como “chans”). Já ganham novas ramificações, como os “homens sigma”.
Agora se popularizam em nova roupagem por meio dos conselhos de coaches e influencers nas redes sociais mais conhecidas, parte de uma indústria que fatura com livros, cursos, palestras e monetização de conteúdo.
Eles se oferecem como “guias de masculinidade” em tempos de mudanças sísmicas — sociais, econômicas, tecnológicas, nos relacionamentos e de fluidez sexual — e muitos fazem um apelo a uma atitude masculina reativa e à retomada de uma sociedade centrada no homem.
O termo redpill (pílula vermelha, em inglês) faz referência ao filme Matrix (1999). Na ficção científica, o protagonista Neo tem que escolher entre tomar a pílula azul, que permite seguir em um mundo de ilusões, e a vermelha, para encarar a realidade.
Como resume a pesquisadora Michele Prado, autora do livro Red Pill – Radicalização e Extremismo, o movimento promete que o seguidor será “escolhido para supostamente enxergar aquilo que ninguém mais vê; ser despertado de um sono profundo com uma pílula que traz a verdadeira compreensão da realidade; sair da Matrix”.
É uma metáfora largamente usada pela extrema-direita, não só por grupos de exaltação à masculinidade — e, ironicamente, concebida por duas cineastas transsexuais, Lilly e Lana Wachowski.
Mais visibilidade hoje
Mesmo antes da repercussão do caso, Schutz já possuía cerca de 300 mil seguidores no Instagram — hoje, aproxima-se dos 340 mil. Ele tem uma operação eficiente em mídias sociais, com cartelas em estilo “clean” de seus ensinamentos e uma curadoria dos momentos de mais impacto das participações em podcasts e programas (os “cortes”).
André Villela de Souza Lima Santos, do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde da USP Ribeirão Preto e pesquisador de um grupo de estudos em masculinidades, diz que ideias misóginas e de discurso de ódio antes restritas a “chans” obscuros agora têm uma circulação mais ampla.
“Para minha surpresa, recentemente vi no Facebook comentários piores do que os encontrados em fóruns anônimos e com as identidades abertas associadas ao posts. Ou seja, isso está se escancarando.”
“Imagino que haja um aumento do número de indivíduos que propagam essas ideias, mas, mesmo que não houvesse, esses discursos estão tendo mais visibilidade. O resultado acaba sendo o mesmo. Conforme mais pessoas têm acesso a esse tipo de conteúdo, vão surgindo mais adeptos e se produz mais conteúdo do tipo”, diz.
Uma das figuras mais conhecidas hoje no mundo por propagar ideias misóginas é Andrew Tate, um ex-participante do Big Brother britânico. No TikTok, vídeos com a hashtag de seu nome já superam 13 bilhões de visualizações.
Os seguidores são incentivados a compartilhar ao máximo seu conteúdo. Uma de suas plataformas é que “mulheres são propriedades de homens”. Tate está atualmente preso na Romênia acusado de exploração e escravização sexual de mulheres. Ele nega as acusações.
Os pensamentos de Tate já foram divulgados na página de Thiago Schutz.
‘Misandria estatal’
O advogado Alex Ciqueira, de 43 anos, do Rio de Janeiro, se define como seguidor da filosofia red pill e criminalista “atuante na defesa de homens em casos da Lei Maria da Penha”.
Ciqueira afirma repudiar os extremistas do movimento (diversos ataques violentos contra mulheres foram levados a cabo por simpatizantes pelo mundo) e “não concordar 100%” com os preceitos do grupo.
Ele nega que esteja propagando ódio contra as mulheres ao endossar a filosofia red pill. “Discordo. A red pill real não é isso que os extremistas fazem”.
Para o advogado, “ser red pill é enxergar a realidade como ela é. Uma questão biológica. Por que a mulher escolhe um homem e não um outro? Para mim, o mais importante é que existe hoje um sistema de leis misândricas [contra os homens]. Nada contra a Lei Maria da Penha, mas ela fere o princípio de igualdade”.
Ciqueira reconhece que há um histórico de milhares de anos de opressão contra as mulheres, mas “essa compensação histórica está passando do ponto”.
O advogado considera que o coach errou no episódio ao fazer ameaças, “só que figuras como ele atraem muita gente porque existe essa misandria do poder estatal para que os homens sejam oprimidos”.
“O que o Thiago [Schutz] fala é sobre liderança masculina. Não adianta, a mulher quer um homem para liderar. Pode ter exceções, mas isso é para o homem. Acho que, quando a mulher pega a liderança do relacionamento, fica até pesado para ela.”
Ele admite que muitos seguidores dos “coaches de masculinidade” são “homens frustrados com a mulher moderna dos relacionamentos de hoje em dia. São homens que tentam uma relação séria e não conseguem, que fracassam na questão amorosa. Não podemos fechar os olhos para isso”.
A crise da masculinidade
De acordo com Michele Prado, apesar de algumas diferenças e contradições entre as subculturas da manosfera (o ecossistema digital que reúne movimentos masculinistas), “é ponto pacífico em todas elas” a ideia de que a ordem social a partir da segunda metade do século 20 é de crescente oposição aos homens e que está se instaurando uma “ditadura ginocêntrica”, ou seja, que as leis e visões de mundo dão preferência a visões e queixas femininas.
A psicanalista Vera Iaconelli, diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, diz que, até o último século, “o homem se definia como aquele que tinha uma esposa em quem ele mandava, os filhos nos quais ele mandava, uma família em que ele mandava. No espaço público, as disputas de poder eram entre homens, mulheres não entravam nessa seara”.
“Na medida em que as mulheres exigem uma relação horizontal, a masculinidade tem que ser revista. E, para algumas pessoas, isso não é compatível com o que elas entendem. Não é conveniente aceitar que outro tem o mesmo ponto.”
Iaconelli observa que “há 100 anos as mulheres vêm se perguntando o que é ser mulher. A gente já enfrentava uma crise de identidade, e os homens foram empurrados para essa crise e estão tentando fazer a lição de casa atrasada”.
Para o psicanalista e professor da USP Christian Dunker, “a masculinidade também se fragmentou” com “as flutuações de orientação sexual, com novos tipos de relacionamento, como as relações abertas, e com a ideia de que uma mulher pode ganhar mais do que um homem”.
Dunker afirma que a filosofia redpill vende a ideia de que o mundo real é “uma espécie de luta permanente, uma batalha de todos contra todos” e legitima uma “narrativa de competição” em que “homens são predadores e, se você quiser a pílula vermelha, você tem que ter dinheiro, cacife e meios para exercer a sua autoridade e assim usar o seu poder para conquistar as mulheres”.
Mas existe também a questão de rejeição social e frustração que levam alguns homens a buscar movimentos como a redpill.
Há nesses grupos que florescem virtualmente um lugar de reconhecimento social, observa Iaconelli.
“Acho que a palavra ‘reconhecimento’ é importante. Amizades se estabelecem ali, laços sociais, afetivos e também o culto ao ódio, que é um afeto muito poderoso. Dá muito prazer se juntar para odiar um terceiro externo, uma sensação de pertencimento a um grupo.”
Dunker aponta que existe também “o cara bem intencionado que quer estar em dia com as pautas e muitas vezes não consegue ser escutado e é criticado e muitas vezes desqualificado”.
“Eu compreendo a posição dessa pessoa, mas a gente tem que acolher com muito limite e precisa ver se ela quer se acolher também. Mas eu concordo que a demonstração de violência de uma pessoa é a exposição da fragilidade absoluta dela”, diz Iaconelli.
Para Dunker, “são pessoas que, no fundo, têm uma masculinidade frágil e que vão procurar uma redução de mundo como uma espécie de defesa”.
O pesquisador André Villela de Souza Lima Santos diz que a frustração vem muito de “uma promessa de meritocracia. De que você vai trabalhar, vai ganhar dinheiro, vai ter uma vida boa, vai se casar, vai ter filhos, aquela coisa bem script mesmo de filme e, quando não se materializa no mundo neoliberal, vira ressentimento”.
“Antes de a gente pensar o que fazer com incels e outros grupos, a gente tem que pensar ‘bom, o que a gente faz em relação às vítimas deles?’. Temos que conversar sobre raça, gênero, classe, desde criança, para justamente desnaturalizar e perceber que não tem nada de natural nos privilégios de antes.”