Sexta-feira sangrenta: por que 55 anos depois não se sabe quantos morreram em repressão a estudantes no Rio
- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Era um Brasil onde não se podia confiar nas estatísticas oficiais, aquele de poucas décadas atrás. Não faz muito tempo: há exatos 55 anos, o episódio que ficou conhecido como Sexta-feira Sangrenta até hoje não tem um consenso sobre o número de vítimas. De um lado, a versão oficial aponta que foram três os mortos.
Já conforme dados do Centro de Documentação de História Contemporânea, da Fundação Getúlio Vargas, teriam sido 28 mortos, além de dezenas de feridos e mais de mil prisões. No verbete dedicado ao tema, a instituição afirma que o número foi obtido conforme informações de hospitais.
Na edição de 22 de junho de 1968, o Jornal do Brasil noticiou o episódio com direito a foto na capa. Segundo o texto, a manifestação havia deixado um saldo de um policial morto e, provavelmente, dois civis. Além de cerca de 80 feridos.
O volume 3 do relatório da Comissão Nacional da Verdade identifica cuidadosamente todas as 45 pessoas que, confirmadas, foram mortas pelo regime militar brasileiro entre 1964 e 1968.
Segundo o documento, foram três militantes, todos civis, que morreram na Sexta-feira Sangrenta. Mas apenas uma, a comerciária Maria Ângela Ribeiro, de 22 anos, morreu durante a manifestação — “morta a tiros pela polícia”, como enfatiza o relatório.
Com apenas 15 anos de idade, o comerciário Fernando da Silva Lembo morreu no Hospital Souza Aguiar em 1º de julho daquele ano. Ele foi para ali levado, segundo o texto “depois de ter sido atingido por disparo de arma de fogo, em 21 de junho, durante uma manifestação pública no centro do Rio de Janeiro”.
De acordo com o relatório da Comissão da Verdade, o terceiro óbito relacionado ao episódio ocorreria em 5 de agosto.
Na data, o estudante e comerciário Manoel Rodrigues Ferreira, de 22 anos, morreu no Hospital Samaritano. Ele havia sido transferido para lá depois de passar por duas outras instituições de saúde e ter se submetido a uma cirurgia. Ferreira havia tomado dois tiros na cabeça durante a repressão.
Professor na Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez explica à BBC News Brasil que a dificuldade em se chegar ao número correto de vítimas é devido à própria falta de transparência da ditadura militar.
“Em primeiro lugar, havia uma censura. Em segunda, os militares não queriam difundir o número exato [de vítimas] para não gerar uma maior insatisfação em relação ao regime, com base no que poderia circular inclusive nos meios de comunicação”, avalia Ramirez.
Para o historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, “o número de 28 mortos é muito incerto, muito impreciso”.
“Não estou aqui corroborando a versão oficial dos três mortos, mas sim colocando em perspectiva o tema. A identificação dessas pessoas é muito imprecisa e dizer que é de acordo com informações de hospitais é algo muito impreciso”, afirma ele, à BBC News Brasil.
Missiato arrisca que o número total de vítimas tenha ficado entre três e seis. “Próximo à versão oficial me parece verossímil”, aponta ele, citando que os dados dos hospitais da época não são precisos e “daí vem a dificuldade de precisar esse número de mortos em uma época em que era completamente cabível a investigação do número de óbitos desse tipo de evento”.
O que foi o episódio
Os ânimos se acirraram a partir do dia 18 de junho, quando o líder estudantil Jean Marc von der Weid acabou preso ao fim de uma passeata.
Nova manifestação estudantil ocorreu no dia 19, com repressão violenta por parte da polícia.
No dia seguinte, estudantes da Universidade Federal do Rio de Janeiro se reuniram e forçaram um debate com o reitor. Na saída do encontro, policiais os aguardavam. Entre golpes de cassetetes e outras demonstrações de força e violência, cerca de 300 foram detidos — e há relatos de que sofreram espancamentos.
O cenário estava formado. Naquele contexto de ditadura militar, a revolta estudantil se voltava contra o regime. Mas não só. Era 1968 e ventos de manifestações semelhantes de outras partes do mundo também sopravam no Brasil.
“Os movimentos sociais do Brasil daquele ano estão inseridos dentro de um ano muito específico e especial para os movimentos sociais do mundo afora. Estão interligados a uma crise de paradigmas, tanto a crítica ao socialismo quanto à crítica à invasão estadunidense ao Vietnã e, principalmente, os movimentos de crítica às instituições mais tradicionais”, contextualiza Missiato.
“Esses atos representam um ano de transformações, com críticas às grandes narrativas daquele momento, tanto no sistema soviético como no sistema capitalístico global”, acrescenta ele.
“No caso do Brasil, essas manifestações se inserem na crítica ao sistema militar que, quatro anos depois de instaurado, já contava com uma percepção inicial modificada. Então era crítica ao regime e lutava pela democracia.”
Ramirez ressalta que “o ano de 1968 foi muito importante no mundo inteiro”, com manifestações iniciadas na França e, depois nos Estados Unidos, “inflamando também os estudantes brasileiros a tomarem uma atitude mais de oposição em relação à ditadura militar”.
Ele lembra que o cenário pós-1964, com crescente censura e o visível não retorno à democracia “como havia sido prometido pelos militares” somou-se à demandas que existiam como lutas “pelas liberdades sexuais e mais espaço para mulheres no mercado de trabalho”.
Os estudantes universitários eram protagonistas deste debate. E, ao mesmo tempo, se tornaram alvo dos militares.
“Foram muitas prisões de estudantes, líderes acadêmicos. E isso contribuiu para aumentar mais e mais a contestação do público estudantil”, explica Ramirez.
Além disso, o sociólogo lembra que havia também demandas próprias da classe estudantil.
Em um Brasil que se tornava mais urbano, a quantidade de vagas nas universidades públicas não acompanhava esse crescimento.
“Além do mais, professores foram aposentados de forma compulsória pela ditadura. Os estudantes estavam muito distantes do apoio do governo federal”, afirma ele.
A fatídica sexta-feira
Era o caldo que estava preparado. “E a Sexta-feira Sangrenta foi uma espécie de ápice desse descontentamento”, define Ramirez. “No fim das contas, os jovens resolveram se rebelar e isso, de alguma forma, inflamou uma parte do resto da população civil. O resultado foi uma batalha campal entre estudantes e policiais, com direito a pedras arremessadas contra eles.”
Na manhã daquele dia 21, o que era para ser uma nova passeata dos estudantes contra a ditadura no centro do Rio acabou já começando em clima de guerra. Munidos de rolhas e bolinhas de gude, os estudantes armaram um obstáculo aos cavalos do policiamento, fazendo com que eles tombassem.
De um lado vinham os tiros, do outro o revide com pedras. Até helicópteros foram utilizados para arremessar bombas de gás lacrimogêneo. No início da tarde, a confusão já estava espalhada por boa parte do centro do Rio.
A batalha só terminou à noite. Com o saldo até hoje impreciso de mortos e feridos.
Um dos fotojornalistas que registraram o episódio — suas imagens foram publicadas pelo Jornal do Brasil, onde ele atuava —, Evandro Teixeira comentaria anos mais tarde que aquele havia sido “um dos dias mais sangrentos que […] o Rio de Janeiro viveu, nesta época”.
“O Jornal do Brasil era o palco das reações. Tudo começava em frente ao jornal, que neste dia foi fechado a bala. A polícia começou a atirar e a fechar as portas”, relembrou ele, em depoimento ao próprio Jornal do Brasil.
“Eu participei ativamente com barreiras, fugindo das cavalarias, vendo estudante caindo. Inclusive tenho a foto do fotógrafo Rubem Seixa, do Correio da Manhã, quando a polícia o surrou depois de ter quebrado seu equipamento.”
Ditadura reforçada
A Sexta-feira Sangrenta foi um dos antecedentes que motivariam, cinco dias depois, a famosa Passeata dos Cem Mil, uma manifestação que reuniu artistas, intelectuais e formadores de opinião, todos nas ruas contra a ditadura militar.
Do outro lado, o governo também reagiu com firmeza. O crescente clima de oposição acabou sendo contra-atacado com mais repressão.
“O estado de exceção, no final das contas, promoveu uma censura generalizada. Não que isso já não ocorresse desde 1964, mas a partir do fim de 1968, o AI5 [Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968, o quinto dos 17 decretos emitidos pela ditadura] deu legitimidade jurídica, infelizmente, para que os militares agissem da forma mais severa possível, não só contra estudantes, mas também contra a imprensa”, comenta Ramirez.
“Assim, essas manifestações como as que ocorreram no Rio foram o estopim para que a ditadura se tornasse, de forma escancarada, mais violenta”, afirma o sociólogo.