Violência contra negros em mercados no Brasil: o que explica repetição de casos
Um casal negro foi agredido após supostamente tentar furtar sacos de leite em pó em um supermercado Big Bompreço em Salvador (Bahia) na última sexta-feira (5/4).
Um vídeo do momento repercutiu nas redes sociais. Nas imagens, os dois são mostrados encostados a uma parede enquanto são xingados e agredidos pelos homens, que não aparecem na gravação. A mulher, que se identifica como Jamile, diz que pegou o produto para sua filha. “Estava precisando”, diz.
A Polícia Civil da Bahia instaurou um inquérito para apurar o caso. “Diligências investigativas ao estabelecimento comercial e em outros pontos da cidade, oitivas de representantes do mercado e busca de imagens de câmeras de vigilância estão sendo realizadas, para identificar os envolvidos”, disse a instituição em nota.
O grupo Carrefour, dono da rede, afirmou que não identificou os agressores como funcionários terceirizados ou do próprio mercado e que disponibilizou todas as imagens das câmeras de segurança para a polícia.
“Mesmo assim, não podemos aceitar que um crime como esse tenha ocorrido em nossas dependências”, afirmou a empresa em nota. (Leia o posicionamento completo da empresa ao final da reportagem)
“Por isso, desligamos a liderança e equipe de prevenção da loja, reforçando nossa tolerância zero com a violência, inclusive nos cargos de gestão, além de rescindir o contrato com a empresa responsável pela segurança da área externa, onde a violência ocorreu. Assumimos a nossa responsabilidade e tomamos medidas rápidas e duras.”
“É inadmissível que qualquer pessoa seja tratada desta maneira. É um crime, com o qual não compactuamos. Estamos buscando o contato das vítimas para oferecer suporte psicológico, médico ou qualquer outro apoio necessário.”
Este não é o primeiro caso de violência ou discriminação contra pessoas negras a ocorrer nas dependências do Carrefour ou de outros supermercados do país.
Em 2020, João Alberto Silveira Freitas, um homem negro de 40 anos, foi espancado até a morte por seguranças em uma das filiais da empresa em Porto Alegre.
No ano anterior, Pedro Henrique Gonzaga, de 19 anos, foi asfixiado até a morte na frente de sua mãe por seguranças de um supermercado Extra na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro.
Outro caso também foi registrado em 2019, quando um jovem de 17 anos foi agredido no supermercado Ricoy, na zona sul paulista. Ele foi amarrado, torturado e açoitado por dois seguranças.
Mais recentemente, em abril, uma professora negra denunciou ter sido vítima de racismo em uma unidade do Atacadão, que também faz parte do grupo Carrefour, ao ter sido perseguida por um segurança enquanto fazia compras.
A BBC News Brasil consultou especialistas da área de combate ao racismo, diversidade e defesa dos direitos coletivos e individuais na área trabalhista para perguntar por que casos de violência e discriminação racial se repetem em supermercados do país.
Segundo eles, além da realidade de racismo estrutural no Brasil, a popularização dos contratos de terceirização para serviços de segurança e a falta de comunicação efetiva entre a direção das empresas e seus funcionários também colaboram para o cenário.
1. Racismo e representatividade
Para Juliana Kaiser, professora do Laboratório de Responsabilidade Social e Sustentabilidade do Instituto de Economia da UFRJ e diretora da startup Trilhas Impacto, o racismo da sociedade brasileira é o elemento central para explicar os casos de violência e discriminação.
“Como mulher negra, posso dizer que minha experiência fazendo compras no Brasil é péssima”, diz.
“No momento em que se tem qualquer ato que de alguma forma não corrobora com uma leitura escrita da lei, se esse corpo é negro, ele vai ser vilipendiado e escorraçado.”
Especificamente quando se trata de casos envolvendo estabelecimentos comerciais, Kaiser afirma que a falta de funcionários negros em posições de destaque colabora para esse cenário.
“O varejo até emprega pessoas negras, mas majoritariamente em posições de bastidores e não na frente das lojas ou em posições de atendimento”, diz. “Quanto mais pessoas negras, mais mudamos a percepção das pessoas que frequentam e trabalham nesses estabelecimentos.”
Segundo a especialista, que faz mentorias para empresas e talentos negros, a representatividade negra no atendimento também beneficia a imagem das lojas e pode colaborar para uma mudança no panorama socieconômico das cidades brasileiras, onde a maior parte da população que vive na periferia e sofre com a pobreza é negra.
Juliana Kaiser afirma ainda que casos de racismo podem ser mais comuns em supermercados do que em outras lojas do varejo porque estes são locais aos quais a população negra têm mais acesso. “Em muitos shoppings centers, pessoas negras de mais baixa renda são barradas logo na entrada”, diz.
2. Terceirização
O ex-procurador-geral do Trabalho e advogado Ronaldo Fleury considera que a prática cada vez mais comum de terceirizar serviços, especialmente de segurança, também tem grande papel na situação atual.
“A terceirização virou uma forma de busca de isenção de responsabilidade”, diz. “E, nos supermercados, a regra hoje é a terceirização — seja para seguranças, repositores, caixas ou controladores de estoque.”
Segundo Fleury, o grande problema desse sistema é que se perde o controle sobre os trabalhadores.
“Algumas características próprias da terceirização, como a rotatividade alta, a baixa remuneração e o trabalho mais precário fazem com que os funcionários tenham menos sensação de pertencimento e instinto de preservação pela empresa”, diz.
O especialista explica, porém, que mesmo se tratando de funcionários terceirizados, as empresas contratantes também têm responsabilidade legal sobre as atitudes dos funcionários, além da prestadora de serviços.
No caso que levou à morte de João Alberto Silveira Freitas em 2020, o Carrefour assinou um termo de ajustamento de conduta (TAC) no valor de R$ 115 milhões no caso. O dinheiro é destinado para políticas de enfrentamento ao racismo. A empresa de segurança Vector, contratada na época pelo supermercado, também assinou um acordo judicial.
Já os seis funcionários envolvidos no incidente foram acusados de homicídio triplamente qualificado e aguardam a data do julgamento popular.
Sobre o episódio registrado em Salvador na semana passada, o ex-procurador-geral do Trabalho afirma que, mesmo que se prove que os atos de violência não foram cometidos por funcionários ligados ao supermercado, o Carrefour deve ser responsabilizado de alguma maneira, já que manter a segurança no local é dever do estabelecimento.
“A empresa pode até comprovar que não teve culpa, mas o ônus dessa prova é do supermercado”, diz.
3. Comunicação e treinamento
Especialistas apontam ainda a dificuldade de comunicação entre o comando das redes de varejo e os funcionários na ponta do serviço como outro fator importante para a realidade atual.
Para Marcus Vinicius Bomfim, consultor de relações-públicas e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), poucas são as empresas que apresentam um formato de gestão sensível à realidade atual brasileira e que conseguem orientar seus trabalhadores de forma efetiva sobre esse cenário.
“Não se cogita do ponto de vista de gestão corporativa a ideia de que temos uma sociedade com alto índice de desemprego e que passa por um retorno forte da fome pós-pandemia. As empresas não apresentam esse quadro social como um fator a ser levado em consideração pelas equipes de atendimento ou segurança.”
A questão da violência racial, segundo ele, não pode ser tratada apenas como um problema operacional, mas sim de relação entre a empresa e seus funcionários.
“Os diretores das empresas que implementam programas de conscientização sobre racismo não estão nas lojas no dia a dia. Falta uma relação mais próxima com os funcionários na ponta, entender quais são os desafios que eles enfrentam.”
Para Juliana Kaiser, é muito comum em estabelecimentos do ramo de varejo que os treinamentos e ações de conscientização acabem nos supervisores ou coordenadores das lojas.
“A informação não chega na ponta. Muitas vezes, o segurança que trabalha no supermercado não foi letrado sobre o tema e, apesar de também ser da periferia, carrega uma cultura racista”, diz.
O que diz o Carrefour?
Em nota enviada à BBC Brasil, a companhia afirmou que os casos citados envolvendo o supermercado “são motivos de profundo pesar e inconformismo em nossa empresa”.
“Nosso compromisso no combate ao racismo vai além do discurso. A tragédia que vitimou João Alberto é um capítulo lamentável e irreparável em nossa história, do qual não vamos esquecer. Após a tragédia, indenizamos e oferecemos apoio psicológico aos familiares. Além disso, desde então, implementamos mais de 50 ações de combate ao racismo.”
Entre as ações citadas pela empresa estão uma política de tolerância zero ao racismo e à discriminação, com desligamento imediato do profissional envolvido após a comprovação do ato, treinamentos constantes para atuação antirracista, programa de letramento racial para os colaboradores da empresa e investimentos em programas de estágio e trainee, aceleração de carreira e bolsas de graduação, mestrado e doutorado para pessoas negras, entre outras.
“Sabemos que ainda temos muito a fazer e por isso os nossos processos e operações continuarão passando por revisões contínuas para a implementação de novas medidas que nos ajudem a avançar cada vez mais nessa frente”, disse o Carrefour na nota.