Paladar: o que muda quando comemos no escuro
- Author, Veronique Greenwood
- Role, BBC Future
No elegante e discreto lobby do restaurante, um homem explica as regras. Nenhum aparelho que emita luz, como relógios de pulso e telefones celulares, é permitido dentro do salão.
Todos os pertences devem ser colocados nos armários ao lado da porta da frente. Casacos devem ser pendurados; se você levar algum para dentro, irá perdê-lo.
O restaurante chama-se Blind Cow (“Vaca cega”) e fica em uma casa de taipa em Zurique, na Suíça. Nele, as expectativas são de sua responsabilidade.
Em outro lugar, você poderia olhar à sua volta e encontrar uma bolsa que caiu no chão. Aqui, atrás das cortinas blackout que vedam o salão de jantar, o que impera é outra realidade.
O garçom ruivo chega ao lobby. Ele nos instrui a formar uma fila atrás dele, como se fôssemos dançar conga. Dali, passamos por uma antessala sombria, as cortinas aveludadas… e, depois, não se vê mais nada.
Ouve-se o som de um salão cheio de pessoas rindo e conversando, além do ruído dos talheres. Mas, para os olhos, nada além das manchas que rodopiam pela nossa visão quando as pálpebras estão fechadas.
Aliás, não importa se seus olhos estão abertos ou não. Você pode fechá-los, se quiser. Não faz diferença alguma.
Restaurantes escuros como o Blind Cow oferecem uma novidade tentadora: uma refeição consumida na total escuridão. Neste caso, ela é servida por garçons cegos ou com visão limitada.
Para eles, a escuridão não é dificuldade. No escuro dos salões de jantar, eles se movem com facilidade e segurança, enquanto as pessoas que enxergam permanecem presas às suas cadeiras, incapazes de se moverem.
Embora já existam alguns restaurantes deste tipo pelo mundo, o Blind Cow foi a primeira experiência permanente. Ele foi fundado por um sacerdote cego em 1999.
Vim aqui com a minha irmã e, enquanto me atrapalhava com o encosto da cadeira e meus sentidos vacilavam, imaginava como jantar no escuro seria diferente para as pessoas com visão. Na ausência da visão, os outros sentidos ficam mais aguçados? Você come menos quando não tem ideia do que está comendo? E o que ficar no escuro causa a outros aspectos da sua mente?
Chegam os pratos
A primeira mordida já deixa claro como esta experiência será estranha, pelo menos para mim.
A voz do garçom diz que, à nossa frente, há uma colher com um pequeno aperitivo. Fico tateando até encontrar o frio objeto de metal, que levo aos lábios.
Percebo a existência de vários botões pequenos e plumas, como se estivesse comendo um pequeno tronco musgoso onde nasceram cogumelos. Não consigo definir com um nome.
Na visão da minha mente, o formato preto tem um contorno branco, substituindo as informações visuais. Minha irmã diz que pode ser maçã, talvez com um pouco de repolho. Mas, sem a imagem para fixar minhas impressões, não consigo me lembrar de quase nada sobre a sensação na boca depois de engolir.
Diversos psicólogos já estudaram os efeitos da visão sobre a memória. As mesmas pessoas questionadas sobre o que se lembram de terem ouvido – desde gravações de salões de sinuca até o latido de cães – apresentam mais dificuldades do que quando questionadas sobre o que haviam visto.
Outro estudo concluiu que as recordações verificadas no mesmo dia da sua formação são muito mais claras se a informação for visual. As informações auditivas são lembradas mais vagamente, sem tanta especificidade.
Mergulhada em um mar de escuridão e textura, tomo consciência do quanto meus olhos formam registros na memória.
Determinadas a fazer melhor desta vez, minha irmã e eu combinamos de experimentar o prato seguinte juntas, desvendando sua identidade apenas com a língua. Certamente, o prato inclui raspas crocantes de repolho cru, frutas secas ácidas e até, segundo ela, uma uva. Nozes, talvez?
Depois vem uma guarnição fria, como iogurte ou queijo cottage. Temos dificuldade para relacionar a avalanche de informações sensoriais, acompanhadas por fugazes lembranças do passado – “na última vez em que comi isso, seja lá o que for, estava em um algum lugar no campo com amigos” – ao nome do alimento.
Mas conseguimos nos lembrar melhor deste prato, já que ficamos concentradas em identificar cada uma dessas percepções, como se fixássemos borboletas em alfinetes, atribuindo designações a cada uma delas.
Já a tarefa física de comer no escuro, propriamente dita, é muito menos trabalhosa. Movendo meu garfo em círculo em volta da borda do prato e verificando com os lábios se peguei alguma coisa, consigo limpar meu prato com facilidade.
Chega o prato principal – carne de vaca, não de cordeiro, segundo decidimos, sobre uma camada de alguma coisa em forma de purê.
Rodeamos em volta de alguns vegetais desconhecidos até que finalmente surge o clique: mandioquinha! Cubos e sementes de abóbora nadam no molho, proporcionando mordidas inesperadas.
Passando o garfo em volta da borda do prato, fico estranhamente criteriosa com essa comida que não consigo ver. Mas como tudo.
Durante o estudo, algumas pessoas que jantaram no escuro receberam porções normais, enquanto outras receberam porções superdimensionadas. Após a refeição, todos os participantes tiveram acesso a uma sobremesa servida em bufê, em uma sala iluminada.
Os participantes que receberam as porções superdimensionadas ingeriram 36% mais calorias que os demais, mas comeram a mesma quantidade de sobremesa e tinham mais ou menos a mesma fome que os demais após o jantar. Isso indica que ver realmente os alimentos à nossa frente pode interferir nos nossos cálculos do tamanho da nossa fome.
De minha parte, como tudo o que consigo pegar com meu garfo e o entusiasmo da busca supera qualquer feedback que posso receber do meu estômago.
Isso não quer dizer que não haja dificuldades físicas nesta refeição. Pedi um vinho tinto seco e, imediatamente, tentei tomá-lo pelo nariz. No escuro, não percebo a altura da taça de vinho e para onde devo dirigi-la.
O restaurante fica mais silencioso. Diversos grupos cujas vozes aprendemos a reconhecer já saíram.
Existem histórias de pessoas que entraram em pânico na suave obscuridade dos restaurantes escuros, talvez incomodadas pela total falta de luz.
De certa forma, esses restaurantes têm algo em comum com as câmaras de privação dos sentidos utilizadas pelos psicólogos que estudaram pela primeira vez a busca das sensações, que são uma parte fundamental das nossas personalidades.
Algumas pessoas não reagem bem quando ficam sem estímulos, enquanto outras acham relaxante e ainda outras talvez comecem a cantar para passar o tempo.
Chega a hora da sobremesa, anunciada pela voz do garçom sobre o meu ombro. Mergulho a colher e não tenho a menor ideia do que seja, exceto que é algo muito, muito familiar.
Cardamomo… pequenos pedaços doces e crocantes… um creme macio e granulado. Estou comendo o que parece ser uma enorme quantidade do doce, remoendo o que poderia me fazer relembrar noites de verão na casa dos meus pais, feiras de rua e o aroma de caramelo de waffles.
Percebo que meus sentidos do paladar, tato e olfato são menos precisos do que o habitual. A principal diferença é que eles estão desconexos, sem o poder unificador da visão.
Só quando encontro algo horrivelmente crocante na minha colher, como se estivesse mastigando um besouro, é que reconheço de sobressalto o creme de castanhas com crocante.
Meu último alimento da refeição é inconfundível: pipoca doce crocante.
Tomamos o chá e nos esquecemos totalmente de comer os biscoitos nos pires porque não conseguimos vê-los.
Percebemos que, na verdade, é um alívio não sermos vistas. A invisibilidade elimina a responsabilidade de manter uma certa aparência, comer de uma certa forma ou deixar tudo arrumado.
Você pode relaxar. Você pode simplesmente sentar-se, falar e pensar. Você é apenas uma voz na escuridão como qualquer outra, finalmente livre do seu corpo.
Chamamos silenciosamente o garçom. Terminamos o jantar.
Quando surgimos no lobby, perguntamos a hora. Sem relógios, nem celulares, nossa impressão é que estivemos no escuro por cerca de 45 minutos. Ficamos surpresas ao descobrir que haviam se passado duas horas. Sem a confirmação da visão, nossa capacidade de controlar o tempo desapareceu.
Para criaturas como nós, sem prática no escuro e com uma vida inteira vivida na luz, não surpreende que o tempo sem visão fique indefinido.
Meses depois daquela refeição incomum, percebo que tenho dificuldade para reconstruir os sabores e sensações que experimentei no escuro. Quase tudo o que permanece é a estranha impressão da primeira mordida. Seu formato é um vazio brilhante nos olhos da minha mente.