‘Em busca da anta perdida’: a expedição que ‘reencontrou’ animal considerado extinto da Caatinga
Em 2012, uma reunião organizada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) chegou a uma triste conclusão: a anta (Tapirus terrestris) estava extinta da Caatinga.
Conforme as conclusões dos especialistas, o maior mamífero terrestre da América do Sul, considerado o “jardineiro das florestas” (entenda os motivos ao longo da reportagem), havia deixado de habitar este bioma tipicamente brasileiro, que se estende por cerca de 10% do território nacional, nos Estados do Nordeste e no norte de Minas Gerais.
A bióloga Patrícia Médici estava nessa reunião e ajudou a bater o martelo sobre a questão. Mas ela ficou com uma pulga atrás da orelha.
“Tive a sensação de que havíamos tomado uma decisão extremamente importante, ao listar este animal como regionalmente extinto, com base em poucas informações”, confessa a especialista, fundadora da Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira do Instituto de Pesquisas Ecológicas (Incab/Ipê).
Esse incômodo inicial virou uma vontade: percorrer toda a Caatinga em busca de relatos históricos e evidências atuais, para se certificar de que a anta havia de fato sumido dali (ou não).
Passados 11 anos da fatídica reunião, os planos viraram realidade: em 2023, Médici reuniu uma equipe para realizar a expedição pela Caatinga em busca da “anta perdida”. Em 2024, o time repetiu a dose.
“Fizemos uma primeira expedição pelos Estados de Minas Gerais, Bahia e Piauí com dois objetivos principais: resgatar as memórias das pessoas sobre uma potencial presença da anta na região no passado e checar se o animal continuava ali atualmente”, detalha a bióloga.
A missão de 2023 percorreu 10 mil quilômetros, durante 31 dias e entrevistou os moradores das comunidades locais – especialmente os mais velhos, que poderiam ter acumulado memórias sobre a anta durante as décadas de vida.
Em 2024, os pesquisadores rodaram 7 mil km e focaram em duas regiões específicas: a Área de Proteção Ambiental Rio Preto, no oeste da Bahia, e o Parque Nacional da Serra das Confusões, no sudeste do Piauí.
Esses locais são considerados ecótonos, ou seja, estão na borda entre biomas e representam uma transição entre a Caatinga e o Cerrado.
Diante de todo o material coletado nas duas expedições, agora Médici pode afirmar com segurança: a anta não está extinta da Caatinga.
“Esses animais nunca deixaram de estar ali”, constata ela.
“O que houve foi uma redução do número de indivíduos da espécie em função das ameaças, como a caça, a indisponibilidade de água, a desertificação do semiárido brasileiro e a perda de habitat para a agropecuária”, complementa a bióloga.
As jardineiras da floresta
Como mencionado, as antas são o maior mamífero terrestre da América do Sul. Elas podem chegar a até 2 metros de comprimento e pesam 300 quilos na idade adulta.
“Elas são animais herbívoros e consomem grandes quantidades de frutas, entre 6 e 8 quilos por dia”, explica Médici.
E é essa característica que faz as antas serem conhecidas como as jardineiras da floresta: ao comer tantas frutas, elas dispersam as sementes pelo vasto território por onde transitam.
Como as sementes passam intactas pelo sistema digestivo, elas saem junto com o cocô – que serve como adubo para aquela muda crescer e se transformar numa planta ou árvore.
“A floresta onde a anta está presente é infinitamente mais biodiversa e possui uma estrutura mais íntegra em comparação com uma área onde esse animal está extinto”, compara a bióloga.
Portanto, quando os especialistas concluíram que a anta havia desaparecido da Caatinga em 2012, essa não era apenas uma má notícia para a espécie, mas para todo o bioma: afinal, as “jardineiras” que garantem a dispersão das sementes não estariam mais lá para cumprir esse papel tão importante.
Ao longo do tempo, isso representaria uma perda da biodiversidade, uma vez que novas plantas não seriam germinadas para substituir aquelas que já estavam mais velhas e prestes a completar os ciclos da natureza.
Por que as antas sumiram?
Uma parte importante das expedições realizadas em 2023 e 2024 consistiu em ouvir as pessoas que habitam a Caatinga.
“Contamos com a colaboração de especialistas em ciências sociais para elaborar os questionários e também interpretar as respostas”, detalha Médici.
“Queríamos saber se a anta existiu ali no passado – e, caso as pessoas tivessem essa lembrança, o que aconteceu para o animal ter desaparecido.”
Os pesquisadores também buscaram registros históricos – e encontraram representações das antas até em pinturas rupestres realizadas por moradores dessa região há milhares de anos.
“A partir disso, nós detectamos a presença histórica desse animal em pontos internos da Caatinga que eram mais úmidos antigamente”, diz a bióloga.
Ao longo das viagens, os pesquisadores ainda se depararam com vestígios da presença atual da anta nesses lugares. Eles viram pegadas e fezes do animal, por exemplo.
“No total, encontramos 38 localidades em que houve a presença da anta no passado e coletamos 53 localizações recentes dessa espécie”, aponta Médici.
O time não chegou a ver uma anta em carne e osso – isso porque, apesar do tamanhão, elas são animais de hábitos noturnos e solitários, o que dificulta bastante um encontro com seres humanos.
“Essas evidências que coletamos são mais que suficientes para concluir que a anta está presente na Caatinga”, afirma a bióloga.
Os locais com evidência de passagem das antas se concentram principalmente nos ecótonos, nas bordas da Caatinga que marcam a fronteira com as áreas de Cerrado.
O mesmo não pode ser dito, porém, dos ecótonos entre a Caatinga e as regiões de Mata Atlântica, que se concentram nas proximidades da costa litorânea.
“Não detectamos vestígios das antas nas bordas entre a Caatinga e a Mata Atlântica na costa da Bahia”, informa Médici.
“Sabemos que a situação desse animal na Mata Atlântica está bem comprometida”, lamenta ela.
O futuro das antas
As expedições também tentaram responder o que explica a redução drástica no número de antas pela Caatinga.
“A diminuição ocorreu por causa de ameaças, como a caça, a falta de água e perda de habitat pela exploração agropecuária”, lista Médici.
Para a bióloga, esse processo que a anta sofre na Caatinga ilustra os riscos que a espécie também corre em outros biomas.
“Com as mudanças climáticas, nós temos projeções de aumento da temperatura e diminuição na disponibilidade de água. Já vemos isso na prática: o Pantanal está cada vez mais seco e a Amazônia apresenta menos água, mesmo nas grandes cheias”, exemplifica ela.
“Sabemos que esses foram alguns dos fatores que contribuíram para reduzir drasticamente o número de antas na Caatinga.”
Segundo a especialista, essas informações precisam ser levadas em conta para planejar ações e garantir a sobrevivência das “jardineiras da floresta” no futuro.
A equipe de Médici estuda realizar uma nova expedição ainda em 2024, mas também trabalha para disponibilizar os dados coletados ao ICMBio – para que a anta volte a ser considerada uma espécie que chama a Caatinga de lar.