Que fim levaram as pesquisas com corações artificiais
- Author, Sian E. Harding
- Role, The MIT Press Reader*
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Não há nada que mostre com mais clareza a perfeita engenharia do coração do que as nossas próprias tentativas de imitá-lo.
A história do coração totalmente artificial é repleta de brilhantes inovações e fracassos clínicos contínuos.
Em 1962, o presidente americano John F. Kennedy desafiou a comunidade científica a fazer aterrissar um homem na Lua e fazê-lo retornar à Terra em segurança até o final da década.
Dois anos depois, o cirurgião cardiovascular Michael DeBakey convenceu o presidente americano Lyndon B. Johnson a financiar um programa para desenvolver o primeiro coração artificial completo e funcional, lançando uma corrida para que o órgão fosse construído com sucesso antes do pouso na Lua.
Em 1969, os dois objetivos foram aparentemente atingidos – o Instituto do Coração do Texas implantou o primeiro coração totalmente artificial apenas três meses antes do lançamento da Apolo 11.
Mas, enquanto os pousos na Lua levaram ao ônibus espacial, às sondas marcianas, à Estação Espacial Internacional e às recentes (ainda que tardias) pretensões de construir uma base lunar para nos levar a Marte, o coração totalmente artificial confiável permanece sendo uma meta distante.
Corações artificiais e transplantes
No início, o coração artificial destinava-se a ser um substituto para o órgão enfraquecido para toda a vida do paciente.
Foi um objetivo difícil de alcançar, pois o primeiro projeto tinha um compressor externo com uma linha aérea através da pele para o interior do corpo do paciente.
Ar comprimido inflava e esvaziava as bolsas ou sacos de poliéster, que se contraíam e expandiam para deslocar o sangue de um saco próximo.
O compressor fora do corpo foi uma decisão útil, já que as partes mecânicas (as mais suscetíveis ao desgaste) podiam ser facilmente substituídas, mas era preciso ter um equipamento volumoso sobre rodas sempre ao lado do paciente.
Era difícil imaginar como oferecer aquilo ao paciente e esperar que ele vivesse sua vida com alguma normalidade por vários anos.
A história do coração artificial também está ligada à do transplante cardíaco.
Este era outro sonho cheio de esperança no início dos anos 1960, até que, em 1967, o cirurgião cardíaco Christian Baarnard realizou na Cidade do Cabo, na África do Sul, o primeiro transplante bem sucedido.
Com isso, o propósito dos primeiros corações artificiais mudou. Eles não precisavam funcionar por toda a vida.
Seu objetivo seria manter o paciente vivo até que pudesse ser encontrado um doador para o transplante.
E, como ocorre com muitas terapias altamente experimentais, o primeiro caso ocorreu em um paciente que não tinha mais opções.
Um homem de 47 anos foi operado para reparar um enorme aneurisma no ventrículo esquerdo que havia sofrido afilamento e inchado a parede do coração.
Ele estava sendo mantido vivo por uma máquina de coração e pulmão, que substituía o coração e mantinha o fluxo sanguíneo através do corpo.
Mas não era possível desconectá-lo da máquina no final da operação, pois o seu coração estava muito fraco. Ele precisava desesperadamente de um transplante.
Denton Cooley, sócio de DeBakey, ofereceu ao paciente o novo coração totalmente artificial experimental e ele aceitou.
O paciente foi mantido estável com o novo aparelho por 64 horas, até que foi encontrado um doador compatível e foi feito o transplante.
À primeira vista, parecia uma vitória para o coração totalmente artificial, mas o paciente morreu de sepse 32 horas depois.
Além disso, o aparelho havia prejudicado o sangue e os rins e as paredes dos sacos expansíveis ficaram cobertas de coágulos sanguíneos.
O episódio gerou uma série de problemas que continuariam a impedir os cientistas e engenheiros de desenvolver o procedimento.
As infecções e a sepse são um desafio permanente para qualquer aparelho que inclua um fio que precise cruzar a pele de forma permanente.
Além disso, os aparelhos que movimentam o sangue alteram sua composição e as superfícies externas causam sua coagulação, resultando em derrames e na degradação do sangue.
O primeiro coração Jarvik, uma das versões seguintes do coração artificial, foi implantado em cinco pacientes. Um deles viveu por 620 dias. Mas dois pacientes tiveram derrames graves e todos acabaram morrendo de sepse ou por problemas sanguíneos.
O transplante cardíaco também teve um início agitado.
O primeiro paciente de Baarnard morreu após apenas 18 dias. O primeiro paciente no Reino Unido, que recebeu o transplante no Hospital Nacional do Coração em Londres, sobreviveu por apenas 45 dias. E o índice geral de sucesso continuou sendo decepcionante.
Aqui, o problema não foi a mecânica da operação, nem o desempenho inicial do coração novo. Foi a incompatibilidade entre o sistema imunológico do receptor e o do doador do coração.
Mesmo que o coração doado tenha a melhor compatibilidade possível com os principais tipos de tecidos do paciente, o sistema imunológico precisa ser suprimido para evitar a rejeição do órgão.
As drogas para suprimir o sistema imunológico, inicialmente, não eram muito sofisticadas. Mas o desenvolvimento da ciclosporina no início dos anos 1980 gerou uma revolução da imunossupressão que aumentou dramaticamente o índice de sucesso dos transplantes cardíacos.
‘Ponte para o transplante’
Atualmente, os transplantes são uma vítima do seu próprio sucesso. Existem muito mais pessoas precisando de transplante do que doadores disponíveis.
Apenas cerca de 200 transplantes são realizados anualmente no Reino Unido, que tem mais de 750 mil pessoas vivendo com insuficiência cardíaca. Números similares podem ser observados em todo o mundo.
Para atender à demanda, os cientistas vêm modificando porcos geneticamente, para que seus corações se tornem compatíveis com o sistema imunológico humano e possam ser transplantados para os pacientes sem risco de rejeição.
O processo é muito complexo e desafiador, mas os primeiros transplantes clínicos começaram em 2022.
O sucesso do transplante cardíaco fez revigorar a busca pelo coração totalmente artificial, com o objetivo mais viável de manter o paciente vivo até que seja encontrado um doador – a chamada “ponte para o transplante”.
Por décadas, as tecnologias do coração artificial melhoraram através de mudanças para materiais mais biocompatíveis, melhores projetos de válvulas e manipulação mais eficiente do fluxo sanguíneo.
Foram atingidos alguns sucessos: um estudo observou que 80% dos pacientes com corações artificiais sobrevivem por mais de um ano e alguns até por seis anos. O período mais longo em que um paciente foi mantido até o transplante foi de 1.373 dias.
Mas complicações infecciosas graves ainda eram comuns e o objetivo de uma terapia “de destino” completa para os corações artificiais ainda era um sonho distante.
Enquanto isso, a necessidade urgente de uma ponte para o transplante havia levado a tecnologia em outra direção. Em vez de substituir totalmente o coração enfraquecido, a ideia era auxiliar o fluxo sanguíneo.
O dispositivo de assistência ventricular (VAD, na sigla em inglês) retirava o sangue do ventrículo cardíaco por um caminho totalmente diferente e o impulsionava de volta para a aorta sob alta pressão.
Esse sangue era acrescentado ao que era ejetado pelo coração e, portanto, ampliava o débito cardíaco real.
O processo também solucionava outro problema encontrado pelos engenheiros nos corações totalmente artificiais – como equilibrar o fluxo sanguíneo cardíaco direito e esquerdo.
A quantidade de sangue em circulação no circuito entre o ventrículo esquerdo e o corpo precisa ficar muito próxima do circuito entre o ventrículo direito e os pulmões.
Afinal, com 100 mil batimentos por dia, uma única colher de chá de diferença em cada batimento faria passarem 500 litros de sangue no local errado.
O coração possui mecanismos biológicos complexos que evoluíram para garantir que isso não aconteça, mas os engenheiros enfrentavam imensas batalhas para tentar fazer o mesmo com sistemas de retroalimentação.
Para os VADs, o ventrículo direito ou, mais frequentemente, o esquerdo pode ser sustentado independentemente, eliminando o problema.
Os dispositivos assistentes ventriculares esquerdos (LVADs) produziram uma revolução no atendimento médico à insuficiência cardíaca em fase terminal.
Mais de 15 mil LVADs foram implantados em todo o mundo e cerca de um terço dos pacientes com insuficiência cardíaca em fase terminal agora são sustentados com LVADs.
A intenção, normalmente, é fazer a ponte dos pacientes para o transplante, mas, na verdade, a falta de doadores faz com que os pacientes, muitas vezes, permaneçam com o apoio do LVAD por anos.
Aos sete anos, as taxas de sobrevivência observadas são de mais de 50% e existem relatos de pacientes que vivem até 13 anos com esses aparelhos. Portanto, os LVADs se tornaram uma terapia padrão independente.
Também aqui, a tecnologia progrediu e os LVADs mais novos apresentam melhor desempenho.
A batalha continua
Uma ideia revolucionária foi parar de imitar o coração, com sua ação pulsante, e mudar para um fluxo constante de sangue.
Pás giratórias (impulsores) impulsionam o sangue em movimento contínuo, criando um fluxo suave e ininterrupto.
Este procedimento tem o curioso efeito colateral de criar um paciente sem pulso, o que pode ser desconcertante para o médico desavisado. E também produz efeitos colaterais indesejados, à medida que o corpo se adapta ao novo fluxo.
As baterias externas são outro inconveniente. Elas se tornam fontes de infecção, mas estão sendo desenvolvidos sistemas para transferir energia por via transcutânea (através da pele), por meio de indução (como nos fogões por indução domésticos).
As unidades de LVAD ainda precisarão de uma pequena bateria implantada para o caso de falha temporária do aparelho – e já se soube de casos de baterias externas que foram arrancadas de pacientes por ladrões de bolsas.
A busca por um coração totalmente artificial e completamente implantável prossegue. A principal dificuldade é tentar desenvolver unidades transcutâneas externas para atender totalmente as exigências do coração.
As especificações de um coração totalmente artificial exigem que ele bombeie oito litros de sangue por minuto contra uma pressão sanguínea de 110 mmHg (milímetros de mercúrio).
E, para atingir esse bombeamento, seria necessário alimentar o coração com uma quantidade diária de trifosfato de adenosina (ATP) – a molécula biológica armazenadora de energia – maior do que a metade do peso do corpo do paciente, se o ATP não fosse renovado continuamente nas células.
Compressores foram miniaturizados para que ficassem mais portáteis, mas é difícil torná-los totalmente implantáveis. Aqui, parece que a tecnologia do VAD pode ser a solução, eliminando os compressores e utilizando, no seu lugar, os aparelhos impulsores, com VADs duplos, direito e esquerdo, trabalhando em conjunto.
As soluções parecem estar próximas. É animador, mas ninguém prevê um caminho fácil.
Os muitos fracassos ocorridos ao longo dos anos certamente deixaram os cientistas mais humildes e admirados com a engenharia natural do coração.
* Sian E. Harding é autoridade reconhecida da ciência cardíaca e professora emérita de farmacologia cardíaca do Instituto Nacional do Coração e do Pulmão do Imperial College de Londres, onde trabalhou como chefe da Divisão de Ciências Cardiovasculares e do Centro BHF de Regeneração Cardíaca. Ela é autora do livro “The Exquisite Machine” (“A máquina extraordinária”, em tradução livre), do qual é extraído este artigo.