Como Haiti se tornou 1º país independente da América Latina — e pagou ‘multa’ multimilionária por isso
Há 220 anos, o Haiti se tornou a primeira nação independente da América Latina, a República negra mais antiga do mundo, e a segunda República mais antiga do hemisfério ocidental, depois dos Estados Unidos.
Tudo isso foi alcançado após a única revolta de escravizados bem-sucedida na história da humanidade. Motivo de orgulho para uma nação que há muito tempo lidera outras listas muito mais pungentes.
O Haiti é o país mais pobre das Américas e um dos mais pobres do mundo, de acordo com qualquer organização que elabora estes rankings, incluindo o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
As raízes históricas da crise permanente que assola o país são muitas.
O Haiti foi palco da escravidão, da revolução, de dívidas, do desmatamento, da corrupção, da exploração e da violência.
Sem falar da colonização, da ocupação pelos EUA, de revoltas, de golpes de Estado e de ditaduras, que culminaram com a chegada, em 1957, de François “Papa Doc” Duvalier ao poder. Ele impôs ao longo de 28 anos um dos regimes mais corruptos e repressores da história moderna.
Não surpreende que nem as infraestruturas, nem a educação, nem a saúde, tampouco qualquer outro bem público tenha sido uma prioridade.
Tudo isso em um país que convive com o infortúnio de estar localizado na principal falha entre as placas tectônicas da América do Norte e do Caribe — e na principal rota de furacões da região, o que torna os desastres naturais ainda mais catastróficos.
Em meio a tantos pesares, há um que se destaca como contraditório aos olhos contemporâneos: para declarar a sua independência, o Haiti teve que pagar uma indenização significativa à potência colonial da qual se libertou.
De Ayiti a La Española e Saint-Domingue
Cristóvão Colombo chegou à ilha que hoje abriga a República do Haiti e a República Dominicana em dezembro de 1492.
Assumindo-a como território da coroa espanhola, Colombo batizou a ilha de Hispaniola ou La Española, conheceu os povos nativos, os taínos, a quem chamou de “índios”, e passou com eles seu primeiro Natal no Novo Mundo.
Embora inicialmente a exploração das jazidas de ouro e a produção de açúcar tenha entusiasmado os colonizadores, a descoberta de enormes riquezas no continente americano fez com que o interesse por Hispaniola diminuísse, especialmente o interesse pela parte ocidental da ilha.
Assim, os piratas ingleses, holandeses e franceses disputaram o que os taínos conheciam como Ayiti.
Aqueles que portavam a bandeira de Luís 14, o “rei sol” francês, assumiram aos poucos o controle daquele canto da ilha — que, em 1665, a França reivindicou formalmente e chamou de Saint-Domingue.
Trinta anos depois, Madri cedeu formalmente um terço de Hispaniola a Paris.
A pérola das Antilhas
Os franceses transformaram Saint-Domingue em uma das colônias mais ricas do mundo — e na mais lucrativa do Caribe.
Em 1789, 75% da produção mundial de açúcar era proveniente de Saint-Domingue, assim como grande parte da riqueza e glória da França.
A chamada pérola das Antilhas também produzia café, tabaco, cacau, algodão e índigo, e liderou a produção mundial de cada uma destas safras em algum momento durante o século 18.
A enorme riqueza produzida pela colônia era extraída graças à importação de dezenas de milhares de pessoas escravizadas por ano e à implementação de um duro sistema de escravidão.
Açúcar amargo
É aqui que os números se tornam amargos: no fim do economicamente bem-sucedido século 18, a pérola das Antilhas era o destino de um terço de todo o tráfico de escravizados no Atlântico.
A elevada demanda era resultado da alta taxa de mortalidade dos escravizados: sua expectativa média de vida era de 21 anos, e muitos morriam apenas três meses após ter chegado.
As doenças, o excesso de trabalho e o sadismo dos supervisores eram responsáveis pela maioria das mortes.
Um texto do autor haitiano Pompée Valentin, reproduzido em tradução livre abaixo, ilustra o tratamento dado aos escravizados nas plantações haitianas:
“Não penduraram homens de cabeça para baixo, os afogaram em sacos, os crucificaram em tábuas, os enterraram vivos, os esmagaram com morteiros?
Não os obrigaram a consumir as fezes?
E, depois de tê-los esfolado com o chicote, não os jogaram vivos para serem devorados por vermes ou formigueiros, ou os amarraram a estacas no pântano para serem devorados por mosquitos? Não os jogaram em caldeirões de calda de cana fervendo?
Não colocaram homens e mulheres dentro de barris cravejados de espinhos e os fizeram rolar pelas encostas das montanhas até o abismo?
Não entregaram estes negros miseráveis aos cães que se alimentam do homem, até que, saciados pela carne humana, deixaram as vítimas dilaceradas para serem arrematadas com baioneta e punhal?”
A revolução de Saint-Domingue
Os ecos da Revolução Francesa de 1789 chegaram à rica colônia, onde os chamados gens de couleur (pessoas de cor) e os escravizados começaram a questionar como a Declaração dos Direitos Humanos do Homem se aplicava à sua situação.
Em 1791, um homem de origem jamaicana chamado Boukman se tornou líder dos escravizados africanos em uma grande plantação em Cap-Français.
Seguindo o modelo da revolução na França, em 22 de agosto daquele ano, os escravizados destruíram as plantações — e executaram todos os brancos que viviam na região.
Foi a primeira ação de uma revolta que se transformou em uma guerra civil e depois em uma batalha frontal contra as forças de Napoleão Bonaparte, e que levou 12 anos para alcançar seu objetivo: expulsar os franceses.
Em 1º de janeiro de 1804, o Haiti declarou sua independência, e Jean-Jacques Dessalines se tornou seu primeiro governante, inicialmente como governador-geral, e mais tarde como imperador Jacques 1° do Haiti, título que atribuiu a si mesmo.
Dessalines ordenou que todos os homens brancos fossem condenados à morte.
E assim foi feito: do início de fevereiro a meados de abril daquele ano, ocorreu um massacre no Haiti, no qual de 3 mil a 5 mil homens e mulheres brancos de todas as idades foram mortos.
Sem qualquer intenção de esconder o que havia acontecido, Dessalines fez uma declaração oficial: “Demos a estes verdadeiros canibais guerra por guerra, crime por crime, indignação por indignação. Sim, salvei o meu país, vinguei a América”.
O preço a pagar
A longa luta pela independência deu autonomia aos escravizados, mas também destruiu a maior parte das plantações e infraestruturas do país.
O custo humano também foi enorme: estima-se que dos 425 mil escravizados, restaram apenas 170 mil em condições de trabalhar para reconstruir o novo país.
A vingança brutal contra os brancos, realizada após a rendição da França, atraiu o desprezo de muitas nações.
E nenhuma reconheceu o Haiti diplomaticamente.
Somado a isso, o que aconteceu em Saint-Domingue era o pior pesadelo de todas as potências que tinham colônias na vizinhança — por isso, elas deixaram o Haiti em “quarentena” para evitar um possível contágio.
Foi assim que aconteceu algo que hoje parece inconcebível.
Em 17 de abril de 1825, o presidente haitiano Jean-Pierre Boyer assinou um acordo com o rei Carlos 10, da França.
O acordo prometia ao Haiti o reconhecimento diplomático francês em troca de uma redução tarifária de 50% sobre as importações francesas — e uma indenização de 150 milhões de francos (cerca de US$ 21 bilhões hoje), pagável em cinco parcelas.
Mas por que uma indenização?
Porque o novo país teve que compensar os proprietários franceses pelas propriedades que perderam, não apenas terras, mas também pessoas escravizadas.
E se o governo haitiano não assinasse o acordo, o país não só permaneceria diplomaticamente isolado, como seria bloqueado por uma frota de navios de guerra franceses que já se encontrava ao largo da costa haitiana.
Os 150 milhões de francos em ouro equivaliam ao rendimento anual do governo haitiano multiplicado por 10 — por isso, o Haiti precisou fazer um empréstimo para efetuar o pagamento da primeira parcela.
A França não se importava, desde que ele recorresse a um banco francês para pegar o empréstimo.
A dívida da independência
Foi assim que começou formalmente a chamada dívida da Independência.
Um banco francês emprestou ao Haiti 30 milhões de francos — o valor da primeira prestação — e deduziu automaticamente 6 milhões de francos em taxas.
Com o que sobrou, 24 milhões de francos, o Haiti começou a pagar as indenizações à França, o que significa que esse dinheiro passou diretamente dos cofres do banco francês para os do tesouro francês.
O Haiti ficou devendo então 30 milhões ao banco francês, e mais 6 milhões ao governo da França referentes ao valor que faltou da primeira parcela.
Era uma espiral sem fim para pagar uma dívida imensa que, mesmo quando foi reduzida à metade em 1830, era alta demais para o país caribenho.
Desde então, o Haiti teve que pedir empréstimos a bancos americanos, franceses e alemães com taxas de juro exorbitantes, que comprometiam a maior parte das receitas nacionais.
Finalmente, em 1947, o Haiti terminou de indenizar os proprietários das plantações da colônia francesa que era a pérola das Antilhas.
O país levou 122 anos para pagar sua dívida pela Independência.