Lula e Israel: ‘Comparar Holocausto e situação em Gaza carece de qualquer respaldo histórico’, diz historiador
A fala de Lula repercutiu internacionalmente e gerou críticas, sobretudo de grupos judeus, com acusações de que a comparação feita pelo presidente brasileiro se tratou de antissemitismo.
“Utilizar o Holocausto como uma arma discursiva é sempre errado, especialmente quando se trata de um chefe de Estado”, disse um comunicado emitido pelo Museu do Holocausto dos Estados Unidos.
“Foi exatamente isso que o presidente brasileiro Lula fez ao promover uma afirmação falsa e antissemita. Isso é ultrajante e deve ser condenado.”
A BBC News Brasil procurou a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República e o Ministério das Relações Exteriores brasileiro para um posicionamento sobre as declarações de Lula, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
No X (antigo Twitter), o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social do governo brasileiro, Paulo Pimenta, fez uma defesa do presidente Lula.
“O Brasil sempre, desde 7 de outubro, condenou os ataques terrorista do Hamas em todos os fóruns. Nossa solidariedade é com a população civil de Gaza, que está sofrendo por atos que não cometeram”, afirmou.
“As palavras do presidente @LulaOficial sempre foram pela paz e para fortalecer o sentimento de solidariedade entre os povos”, acrescentou.
O historiador Avraham Milgram, que trabalhou por decadas Museu do Holocausto do Yad Vashem, em Jerusalém, classifica a comparação feita por Lula como inadequada e sem respaldo histórico.
“Sua declaração não foi respaldada nem mesmo por líderes de países árabes, que criticam Israel, mas jamais compararam à Alemanha nazista”, disse ele, afirmando que considera legítimas as críticas direcionadas às politicas do Estado de Israel.
Foi Milgram, inclusive, que proporcionou à Lula e sua comitiva, durante viagem à Israel em 2010, uma visita guiada pelo Museu do Holocausto.
Na ocasião, ao sair do museu, Lula disse aos jornalistas que conhecer o local era “quase obrigatório” para todos que querem governar uma nação. “A humanidade deve repetir quantas vezes forem necessárias ‘nunca mais’.”
Em entrevista à BBC News Brasil, Avraham Milgram falou sobre a comparação entre a guerra de Gaza e o Holocausto, as diferenças e elementos comuns entre o Holocausto e outros genocídios, o que pode ser considerado antissemitismo e sobre a importância da memória do assassinato em massa de judeus no século 20. Confira a seguir.
BBC News Brasil – O Holocausto pode ser comparado com a situação em Gaza?
Avraham Milgram – A comparação entre o Holocausto e a situação em Gaza é inadequada e carece de qualquer respaldo histórico.
O Holocausto ocorreu entre 1933 e 1945, impulsionado por uma motivação ideológica que via os judeus como prejudiciais à história, uma visão completamente irreal e dissociada da realidade, sem nenhum conflito real entre os judeus e a Alemanha.
A ideologia nazista projetava os judeus como um elemento poluidor da humanidade, algo totalmente irracional.
Segundo os nazistas era necessário, essencial eliminar todos os judeus em qualquer parte do mundo, resultando em um plano genocida durante a Segunda Guerra Mundial, com campos de extermínio famosos como Auschwitz e Sobibor, onde judeus foram sistematicamente assassinados.
Essa situação não tem qualquer relação com os conflitos contemporâneos, como o envolvendo Israel e o Hamas.
O conflito entre Israel e os palestinos é uma disputa territorial, envolve elementos religiosos e políticos, mas não possui a perspectiva irracional e genocida do Holocausto.
Não há comparação possível entre o assassinato sistemático de 6 milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial e os eventos atuais em Gaza. Poderíamos comparar apenas para eliminar qualquer possibilidade de comparação.
BBC News Brasil – Há elementos que ocorreram durante o Holocausto que poderiam ser encontrados em outros genocídios?
Milgram – Poderia encontrar como fatores em comum, por exemplo ódio racial no genocídio que ocorreu em 1994 em Ruanda, quando os hutus incitaram a população a exterminar os tutsis.
Outros elementos, de outros genocídios, que talvez poderiam lembrar o genocidio de judeus são por exemplo a propaganda de ódio, desumanização… E a projeção de um grupo inimigo que ameaça a existência do Estado, por exemplo no genocídio dos armênios, que ocorreu em 1915, na Turquia.
Os armênios, predominantemente cristãos, habitavam regiões próximas à União Soviética, e os turcos os percebiam como uma potencial quinta coluna [grupo infiltrado]. Além das diferenças religiosas e econômicas, os armênios eram uma elite, sendo retratados como uma ameaça ao Estado moderno turco.
Em cada genocídio, há elementos comuns, muitos dos quais também presentes no Holocausto. Mas em nenhum encontramos todos os componentes fundamentais que caracterizam o Holocausto, que é um episodio sem precedentes.
BBC News Brasil – Algumas pessoas argumentam que críticas à política de Israel muitas vezes são classificadas como antissemitismo e que isso poderia ser usado, de alguma forma, para abafar criticas. Como o senhor vê isso e quando uma crítica pode ou não ser considerada antissemitismo?
Milgram – É totalmente legítimo criticar as políticas oficiais do Estado de Israel. Isso está sendo contestado já há mais de um ano dentro da sociedade israelense; grandes setores estão indo às ruas em grandes manifestações contra as políticas oficiais do Estado, sejam políticas internas que tentam contestar a democracia, enfraquecer as instituições do Estado de Israel, em relação aos territórios conquistados, em relação à sua política externa em relação à casa, ou outras coisas.
Isto é legítimo, isto não é antissemitismo, isto é algo que tem senso, é uma coisa que deve ser vista como uma atitude legítima sob qualquer ponto de vista.
O que é ilegítimo e o que é considerado antissemitismo é contestar a legitimidade da existência do Estado de Israel. Ou seja, negar a Israel a sua existência é legítima, como é legítima a existência de qualquer Estado, mais de 120 estados representados na ONU.
Ou seja, incitar a ilegitimidade do Estado de Israel é combater sua existência e incitar a sua destruição, como nós ouvimos nas manifestações contra Israel nas ruas de Londres, nas ruas de outros países do mundo, inclusive no Brasil, dizendo Palestina livre ‘from the river to the sea’, ou seja, do Rio Jordão até o mar Mediterrâneo, isso significa a destruição do Estado de Israel, a erradicação do Estado de Israel.
Isto é ilegítimo, ou seja, há uma linha muito clara entre a legitimidade de críticas a políticas de governos e a ilegitimidade da negação da existência dos Estados de Israel. No caso da declaração do Lula, ela se distancia da crítica às políticas do Estado.
BBC News Brasil – O senhor avalia que a fala de Lula pode ser considerada antissemita?
Milgram – Eu penso que sim, na medida em que o presidente Lula compara o Estado de Israel, sua sociedade e seu exército como equiparáveis à Alemanha nazista, Hitler e aos alemães que apoiaram esse regime, além de todo o mecanismo estatal que produziu aquele crime de dimensões universais. Acredito que essa declaração e essa atitude configuram uma postura antissemita.
Aliás, a declaração dele durante a convenção da União dos Estados Africanos lembra as declarações do antigo líder iraniano [Mahmoud] Ahmadinejad, que, no início do século 20, incitava à destruição do Estado de Israel. Nesse sentido, não há muita diferença entre a declaração de Lula e as de Ahmadinejad naquela época.
Eu acho que essa declaração tem uma essência de incitação e um apelo à destruição do Estado de Israel, porque chamar Israel de um Estado nazista e acusá-lo de cometer um Holocausto significa rotular o Estado como criminoso, anti-humano e ilegítimo.
A atitude de Lula é, de fato, uma atitude infeliz. No entanto, a pergunta que fica é: qual é a razão para Lula fazer esse tipo de declaração?
Quando ele estava no governo anterior, no início do século 20, sendo presidente do Brasil, ele chegou a visitar Israel, e eu mesmo o guiei durante essa visita. Ele trouxe uma grande comitiva do Brasil, composta por empresários, ministros e governadores, para conhecer Israel. Acho que algo mudou desde então.
BBC News Brasil – O que o senhor acredita que mudou?
Milgram – Acredito que o conflito atual entre Israel e o Hamas não é o motivo principal, porque Israel já enfrentou o Hamas em 2008, 2012 e 2014. A diferença do que ocorreu no dia 7 de outubro é única em termos de dimensão e impacto, comparada aos conflitos anteriores.
No dia 7 de outubro, o Hamas invadiu Israel, assassinou civis e sequestrou israelenses, principalmente jovens que estavam em uma festa, além de outros que viviam em comunidades na fronteira, em uma região que nunca foi contestada por ninguém, exceto pelo Hamas. Essa região faz parte de Israel desde 1948, sendo reconhecida internacionalmente pela ONU [Organização das Nações Unidas] e por todos os países como parte do Estado de Israel.
Acredito que Lula, desde os governos passados, sempre teve a obsessão de se tornar líder dos países do Terceiro Mundo.
E essa declaração foi feita durante sua presença na convenção dos países africanos em Addis Ababa para criar um impacto e se afirmar como líder desses países. Nesse sentido, ele manipulou o conflito para seus interesses pessoais e para projetar o Brasil como uma potência grande como Alemanha, França, Estados Unidos, China e União Soviética.
Acho que, usando uma expressão em português, ele escorregou na casca de banana, ou seja, cometeu um erro. Ele está sendo criticado internacionalmente por essa falta de senso político.
Aliás, sua declaração não foi respaldada nem mesmo por líderes de países árabes, que criticam Israel, mas jamais compararam Israel à Alemanha nazista ou associaram Netanyahu a Hitler.
Gostaria de acrescentar mais uma coisa: a falta de senso político de Lula é tão evidente que, com essa declaração, ele fortalece o governo de Netanyahu no mundo e dá credibilidade a um governo que está sendo questionado dentro de Israel pela sociedade israelense, com grandes setores pedindo sua saída e a realização de novas eleições.
Portanto, a postura de Lula nesse sentido é contraproducente, pois fortalece o governo de Netanyahu tanto dentro quanto fora de Israel.
BBC News Brasil – Qual a importância de manter viva a memória do Holocausto?
Milgram – O primeiro ponto que destacaria é que o Holocausto, com o assassinato de 6 milhões de judeus na Europa Ocidental cristã no século 20, em si, é motivo suficiente e uma justificativa para preservar a memória.
Isso ocorreu no contexto da modernidade, no seio do mundo ocidental e da cristandade, onde a maioria da sociedade foi testemunha direta desses acontecimentos.
Pessoas na França, na Alemanha, na Hungria, na Noruega, na Grécia… A sociedade civil testemunhou a política racial de degradação, humilhação, roubo das propriedades dos judeus, a sinalização de quem eram os judeus e, finalmente, a expulsão de suas casas, a deportação por meio de trens para campos de extermínio e o desaparecimento de comunidades inteiras de seus países.
Um exemplo notável é o caso da Grécia, onde viviam 67 mil judeus, a maioria deles na cidade de Tessalônica. Essas pessoas falavam o ladino, uma língua que é uma mistura de espanhol com português, e que mantiveram essa cultura por séculos, sem qualquer contato significativo com os alemães.
A maioria desses judeus foram enviados à morte, e, na Grécia hoje, a comunidade praticamente não existe mais. O mesmo se aplica à Polônia e à Hungria.
Portanto, o fato de um crime de tal magnitude ter ocorrido nesta Europa moderna, cristã e ocidental, onde a maioria se omitiu, é algo que merece ser analisado e verificado.
A preservação dessa memória é essencial para evitar a repetição de fenômenos dessa natureza e sensibilizar as pessoas contra a discriminação, crimes contra os direitos humanos e serve como uma defesa contra processos antidemocráticos.
BBC News Brasil – Existem outras distorções em relação ao Holocausto?
Milgram – Ao longo de muitos anos, houve uma banalização do Holocausto. Até hoje, o termo é muitas vezes mal utilizado e abusado, sendo associado a causas diversas, como organizações que defendem os direitos dos animais que falam em genocídio dos animais, ou em crises e mortes, quando o termo é aplicado de maneira inadequada. Essa banalização do conceito do Holocausto é comum em diversas culturas ao redor do mundo.
Além disso, há uma distorção bastante atual, feita presidente russo Vladimir Putin, que invadiu a Ucrânia há dois anos e acusa os ucranianos de serem nazistas, comparando-os a Hitler e ao Estado nazista da Segunda Guerra Mundial. Isso também representa uma distorção e, mais uma vez, é um exemplo do uso e abuso da história e de conceitos para objetivos políticos de diversas naturezas.
BBC News Brasil – Como o senhor avalia a manifestação do antissemitismo no mundo, tanto na direita quanto na esquerda?
Milgram – Sou da opinião de que o ódio aos judeus é um fator intrínseco, um componente que faz parte da cultura ocidental e cristã.
Esse ódio tem altos e baixos, sendo mais evidente em momentos de tensão, como no caso de Israel, onde vemos manifestações antissemitas em setores da direita, especialmente em relação ao conflito árabe-judeu.
Na extrema-esquerda, nos últimos anos, principalmente durante o conflito que começou no dia 7 de outubro, a perspectiva é outra, mas também tem uma essência de ódio aos judeus em Israel.
Nesse sentido, o Estado de Israel é visto como o último padrão colonialista no mundo, uma manifestação do colonialismo ocidental que é percebida como opressora e exploradora.
Tanto na extrema-esquerda quanto na extrema-direita, há uma visão simplista, que não considera a complexidade da vida humana e busca soluções imediatas e muitas vezes violentas.
O antissemitismo tem raízes históricas e se manifesta de diferentes formas, dependendo das condições políticas e do momento. No entanto, é importante ressaltar que em partes do mundo, como China, Índia, Filipinas e Indonésia, onde vive uma parte significativa da humanidade, não há antissemitismo, nem essa projeção negativa em relação aos judeus e a Israel, como encontramos no mundo ocidental.
BBC News Brasil – No caso de Lula, alguns apoiadores do presidente questionam que a fala dele toma proporções maiores do que as críticas que ele estava fazendo sobre a situação em Gaza. Como o senhor enxerga isso e as proporções que o episódio tomou?
Milgram – Considero evidente que as declarações do Lula extrapolaram o bom senso e vão contra as opiniões do mundo inteiro. Nesse sentido, há uma clara defasagem, uma radicalização por parte do Lula em relação ao conflito.
Desde o início do conflito, ele não criticou ao Hamas como um grupo terrorista que teve uma atitude inumana em relação à população civil de Israel foi seletiva, indo contra a ideologia fundamentalista muçulmana não apenas contra Israel, mas também contra Estados moderados árabes como Egito, Jordânia, Arábia Saudita e Marrocos.
É estranho que o Lula, líder de um partido operário, trabalhista, socialista, que luta contra padrões retrógrados e religiosos, não tenha criticado o Hamas. Ele não fez nenhuma crítica à postura do Hamas, que vai contra os valores democráticos, os direitos humanos, o respeito à mulher, às minorias e aos outros.
A última declaração de Lula comparando Israel à Alemanha nazista e sugerindo um assassinato sistemático de palestinos é preocupante. Isso vai além de uma crítica objetiva às políticas do governo de Israel, o que é legítimo; há elementos de antissemitismo e ódio generalizado aos judeus.
BBC News Brasil – Lula fez algumas declarações citando o Hamas e o ataque como ‘terrorista’. Como o senhor enxerga isso?
Milgram – A declaração que Lula fez contra o Hamas é parcial, visto que ele demonstrou sensibilidade pela morte de crianças palestinas e não fez menção das crianças, jovens e mulheres estupradas pelo Hamas no dia 7.
Depois disso, ele passou a falar sobre genocídio, apoiou a gestão da África do Sul e, agora, radicalizou ao mencionar Israel como o Estado nazista que cometeu o Holocausto.