Júlio Lancellotti: como CPI contra padre dá a largada na disputa eleitoral em São Paulo
Os últimos dias foram marcados por um forte embate entre apoiadores e opositores do padre Júlio Lancellotti, conhecido por seu trabalho de assistência a moradores de rua em São Paulo.
De um lado está o vereador Rubinho Nunes (União), que iniciou o recolhimento de assinaturas para abrir uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal para investigar o trabalho de ONGs que atuam na região da Cracolândia. A controvérsia começou quando Rubinho anunciou que o padre Júlio seria um dos investigados.
A motivação seria uma passagem do religioso como conselheiro da organização filantrópica Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto (Bompar).
O Bonpar é apontado por Rubinho Nunes como uma das principais organizações a serem investigadas, junto com o movimento Craco Resiste, dois os atores da região que ele acusa de integrar uma suposta “máfia da miséria” para lucrar. Júlio Lancellotti, que foi defendido pela Arquidiocese de São Paulo, diz que há anos não faz parte da Bonpar e nega qualquer irregularidade. A Craco Resiste não se manifestou.
A acusação de Rubinho provocou um forte movimento de apoio ao padre Júlio nas redes sociais. Em resposta a Rubinho, artistas e políticos, como a ministra do Orçamento e Planejamento, Simone Tebet, o ator Bruno Gagliasso e a cantora Daniela Mercury fizeram pressão em defesa do religioso. Todos publicaram em seus perfis uma ilustração de Lancellotti com a mensagem: “Protejam o Padre Júlio Lancellotti”. O presidente Lula também manifestou apoio ao religioso em suas redes sociais.
Incomodados com a repercussão, alguns vereadores que já haviam assinado o pedido de abertura de CPI voltaram atrás. Um deles foi Thammy Miranda (PL), que retirou seu apoio após dizer que foi enganado.
“Se tivessem me apresentado uma CPI (dizendo) ‘vamos investigar o padre Júlio Lancellotti’, eu jamais teria assinado, porque o trabalho que o senhor faz, o trabalho que o senhor apresenta, é o que eu faço hoje em dia, que é cuidar de gente, cuidar de pessoas”, disse Miranda durante live com o padre.
Apesar do revés, a iniciativa do vereador Rubinho segue viva. A CPI já foi protocolada e depende de uma avaliação do colégio de líderes da Câmara para que a proposta seja enviada ao plenário, que vai decidir se ela será instalada ou não a partir de fevereiro.
O tema serviu para catalisar já nos primeiros dias do ano o debate eleitoral na cidade, que elege o chefe do Executivo e 55 vereadores em outubro.
O prefeito e pré-candidato à reeleição, Ricardo Nunes (MDB), que busca o apoio dos conservadores e do bolsonarismo para sua campanha, teve de se manifestar. Dois dos principais nomes que Nunes deve enfrentar nas urnas, os deputados federais Guilherme Boulos (PSOL) e Tábata Amaral (PSB), também entraram na defesa de Júlio Lancellotti.
Além de questionar os três acima sobre o tema, a BBC News Brasil também conversou com o autor da proposta da CPI para entender quais serão seus próximos passos.
A reportagem também entrevistou cientistas políticos, que avaliaram que a ideia de fazer uma CPI e ter como um dos alvos o padre Júlio é uma tentativa, não necessariamente bem-sucedida, de mobilizar um eleitorado mais conservador em busca de visibilidade mirando a eleição para o Legislativo municipal – uma interpretação que o vereador Rubinho rejeita.
Entenda abaixo a mobilização em torno da CPI, suas chances de ser instalada na Câmara e a análise sobre seus possíveis impactos nas eleições municipais.
Quais as chances de a CPI vingar?
Em entrevista à BBC News Brasil, o vereador Rubinho Nunes disse que o pedido de abertura da CPI das ONGs não tem interesse político. Um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL), do qual se afastou, ele afirma que o foco da CPI não é investigar o padre Júlio, embora tenha citado o religioso em suas redes sociais ao falar da proposta.
“O pedido foi pautado após solicitações de diversas ONGs e do Conselho de Segurança da região, por uma falta de atenção do poder público. Naturalmente, o pessoal do PSOL está politizando e começa a alterar o objeto de investigação, que são as ONGs, para personificar a figura do padre Júlio Lancellotti, que não é o objetivo principal”, diz.
Rubinho afirma que “essa tentativa da oposição de confundir” não vai impedir que ele prossiga com a proposta de CPI.
“Não é por isso que eu vou deixar de atuar. Não vou prevaricar”, diz.
Rubinho diz que alguns dos seu colegas de Câmara recuaram por conta da pressão de militantes de esquerda.
“É natural que retirem as assinaturas. Eu respeito e não fico ofendido, mas não é correto dizer que eu enganei até porque ainda temos assinaturas suficientes para a abertura da investigação. Por outro lado, outros vereadores manifestaram interesse em participar, como o George Hato (MDB)”, afirma.
Rubinho conta ainda com um aliado de peso, o presidente da Câmara e seu aliado de partido, Milton Leite (União), que segue dizendo que vai debater a CPI e disse ao jornal Folha de S.Paulo ter conhecimento de acusações de “extrema gravidade” contra Julio Lancelloti. Sem detalhá-las, disse que vai levá-las ao Vaticano.
Em fevereiro, caberá a Leite pautar o tema da CPI no colégio de líderes da Câmara, que deve decidir se a proposta vai ou não a plenário, onde precisa da maioria dos 55 vereadores para ser aprovada.
Para analistas, a mobilização em defesa de padre Julio e repercussão midiática podem fazer os vereadores votarem contra a proposta.
O peso da cúpula católica
Na quarta-feira (3/1), a Arquidiocese de São Paulo se manifestou em defesa de Júlio Lancellotti. Por meio de nota enviada à imprensa, informou que “acompanha com perplexidade” a tentativa de instalar uma CPI.
“Perguntamo-nos por quais motivos se pretende promover uma CPI contra um sacerdote que trabalha com os pobres, justamente no início de um ano eleitoral?”, questionou a nota da arquidiocese.
Dias depois, foi a vez do cardeal dom Odillo Scherer defender o padre, dizendo que ele trabalha em nome da arquidiocese: “Por que mirar no trabalho do padre Júlio, que não é ONG, não tem ONG e não recebe dinheiro público para seu trabalho?”
O respaldo institucional e a manifestação de dom Odillo, identificado por analistas como sendo de uma ala mais conservadora da cúpula católica, foram comemorados pelos apoiadores do padre Júlio nas redes sociais.
Para o cientista político Cláudio Couto, professor da FGV, esse posicionamento contundente a favor do padre pode causar uma rejeição de boa parte do eleitorado à proposta do vereador Rubinho.
“Acho que ele (Rubinho) comprou uma briga com a Igreja Católica e não é pequena. A posição da arquidiocese é muito importante. Isso é chocante e pode ter um custo político muito alto”, diz Couto.
O professor da FGV afirma, no entanto, que esse discurso pode ser benéfico para que Rubinho construa um nicho de eleitorado.
“Ele pode se reeleger com esse tipo de discurso. Não são todos que vão se beneficiar de uma estratégia dessa natureza. Vereadores mais ao centro e próximos do eleitorado católico sabem que correm risco de serem punidos pelos seus eleitores”, diz.
Rubinho diz que respeita a Igreja Católica por seu “trabalho sério”, mas reconhece que a oposição dos católicos à CPI pode prejudicá-lo.
“Isso fatalmente pode causar um dano à minha imagem, mas eu tenho um compromisso ético e moral de cumprir o meu dever de investigar. Por mais que eu possa sofrer um dano de imagem, eu não vou deixar de levar uma investigação séria como essa. Mesmo que isso me cause prejuízo eleitoral”, diz.
Ele ressalta que a CPI deve convocar pessoas para prestar esclarecimentos, mas vai focar na atuação das ONGs como um todo.
“Nós queremos investigar quem são essas ONGs, quais são os agentes ligados a elas e a utilização de recursos públicos e o resultado de sua atuação. A quantidade de pessoas que foram atendidas, as pessoas que estão curadas do vício em drogas e efetivamente tratadas”, diz.
Impacto na disputa da Câmara
Lara Mesquita, cientista política da escola de economia da FGV, diz que o pedido de abertura da CPI pode ter impacto na eleição municipal para o Legislativo.
“A gente tem que separar as duas eleições: a da Câmara dos Vereadores da corrida pela prefeitura. Caso se concretize a instauração da CPI, isso pode dar mais visibilidade talvez para quem propôs e para quem vai ser o relator e presidente da comissão”.
“Isso acontece por conta do destaque promovido pela cobertura da imprensa, que pode ser positivo para os candidatos”, diz Mesquita.
Ela afirma que a grande visibilidade do caso já é um sucesso para Rubinho – e visibilidade é um fator decisivo para galvanizar apoio nas redes sociais em meio a uma campanha para vereador, por natureza fragmentada e sem cobertura midiática garantida.
“Ele está ganhando destaque e visibilidade. Isso pode ajudar o leitor a lembrar dele na hora de votar, principalmente aquele que não tem um candidato próximo e que preste serviços no bairro”, explica.
A cientista política diz que eleitores alinhados a princípios mais conservadores e ligados ao “fenômeno do bolsonarismo” nas últimas eleições podem ser atraídos pelo discurso de Rubinho e voltarem nele.
De fato, Júlio Lancellotti, que faz sermões progressistas e discursa a favor da diversidade sexual, é fortemente identificado com a esquerda. Se tem o apoio de progressistas influentes no espaço virtual e apoio nas ruas de São Paulo, no seu dia a dia ele também enfrenta oposição de grupos de moradores do bairro da Mooca, na zona leste de São Paulo, onde fica sua paróquia.
Em páginas do Instagram, moradores fazem duras críticas ao padre e alegam que sua atuação atrai violência e pessoas em situação de rua para o bairro. Em fevereiro, um abaixo-assinado reuniu mais de cem assinaturas para pedir a transferência do Centro de Acolhimento para moradores de rua que ele coordena.
Quanto à disputa para prefeito, no entanto, Lara Mesquita acha difícil que o tema da CPI também se reflita na corrida eleitoral da maior cidade da América Latina.
“O PL e (Jair) Bolsonaro vão apoiar Ricardo Nunes. O prefeito já manifestou apoio ao padre e está questionando a instalação da CPI. Eu acho que isso só impactaria na eleição municipal se for algo levantado por Ricardo Salles ou Kim Kataguiri”, diz a professora.
Deputados do PL e do União, respectivamente, Salles e Kataguiri são pré-candidatos a prefeito e não se manifestaram ainda sobre o tema – a BBC os procurou, mas não havia tido resposta até a publicação deste texto.
Para Mesquita, Rubinho, que está em seu primeiro mandato, está trabalhando numa tentativa de relembrar a base que o elegeu e tentando mobilizar essas pessoas.
Cláudio Couto, cientista político da FGV EAESP, diz que o vereador Rubinho se beneficiou ao menos parcialmente por ganhar visibilidade e conseguir destaque na imprensa em ano eleitoral.
“Essa estratégia deve fazer sentido para ele, mas tem um custo político para outros vereadores, como Thammy Miranda, que recuou e dizendo que foi enganado e não constava o nome do padre Júlio, por isso assinou de boa fé”, diz.
O que dizem Nunes e pré-candidatos a prefeito
A BBC News Brasil procurou o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), para que ele comentasse o caso. Ele foi questionado se concorda com o pedido de abertura de CPI e se vai se encontrar com o padre Júlio na próxima semana, como foi divulgado na imprensa.
Por meio de nota, a prefeitura informou que “Ricardo Nunes não interfere em decisões da Câmara, procurando manter de forma transparente a independência entre o Executivo e o Legislativo.”
Nunes, que ainda espera ter o apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro na disputa da reeleição, tem sido cauteloso ao falar da iniciativa. De acordo com analistas, ele tampouco teria vantagens se um debate sobre as políticas para a Cracolândia ganharem o centro do debate eleitoral.
Ainda assim, o prefeito foi obrigado a falar do tema, provocado pelo pré-candidato à Prefeitura de São Paulo pelo PSOL, Guilherme Boulos.
“A política de Ricardo Nunes para as pessoas em situação de rua é que deve ser investigada! O que o padre Júlio faz é lutar por toda essa gente abandonada pela prefeitura”, escreveu Boulos.
Nunes rebateu acusando Boulos de apoiar o governo da Nicarágua, historicamente ligado à esquerda e acusado de graves violações de direitos humanos, inclusive contra membros da Igreja Católica.
Tabata Amaral (PSB), que também é pré-candidata à prefeitura da capital paulista, já tinha apoiado o padre nas redes e informou à BBC News Brasil por meio de sua assessoria de imprensa que a CPI das ONGs é “um movimento oportunista, que representa o ódio que a polarização gera, e, não enfrenta com seriedade o problema da Cracolândia.”
“Por mais que alguns vereadores já tenham retirado o seu apoio, é preciso ainda mais força para que esse absurdo não vá para frente”, concluiu Tábata.
Pesquisa Atlas Intel sobre a corrida paulistana divulgada em 31 de dezembro mostra Boulos liderando a corrida pela prefeitura, com 29,5% das intenções de voto.
Em segundo lugar aparece Ricardo Nunes, com 18%, e Ricardo Salles com 17,6%. Tabata Amaral aparece com 6,2% e Kim Kataguiri, com 5,3%. A margem de erro é de 2,5 pontos percentuais.