O professor Luiz Sávio de Almeida encerrou sua palestra no Arquivo Público de Alagoas (APA), no dia 21 de dezembro de 2021 – quando o estado vivia ainda sob a pandemia de Covid-19 –, juntou as cinco páginas de papel A4 onde havia rabiscado de próprio punho o roteiro do que iria falar naquela noite e as entregou à superintendente da instituição, Wilma Nóbrega. “Tome, eu quis lhe homenagear, mas você não deixou”, disse, num misto de lamento e ‘bronca’.
Wilma Nóbrega tentou explicar ao professor que a ideia era falar sobre a importância do Arquivo Público para a preservação da memória e história alagoanas, aproveitando o mês em que o equipamento faz aniversário, comemorado neste sábado (30). Sávio de Almeida entendeu e decidiu abandonar o assunto que havia preparado – sobre o papel da mulher na história de Alagoas – para se dedicar ao APA.
Era a 40ª edição do Chá de Memória, projeto que visa a dinamização do Arquivo Público com a realização mensal de palestras, mesas redondas e debates sobre os mais variados temas envolvendo pesquisadores, historiadores e a sociedade alagoana. Naquela noite, além de Sávio de Almeida, participaram do evento o então secretário de Estado da Comunicação, Ênio Lins, e a própria Wilma Nóbrega.
“O tema foi a preservação e valorização do acervo público e as vivências pessoais dos palestrantes naquele centro de pesquisa”, relembrou Ênio Lins. “Nem me lembro do que falei, pois toda minha atenção estava voltada a mais uma aula que receberia de Sávio de Almeida”, completou.
A ‘bronca’ dada em Wilma Nóbrega não passava de uma forma carinhosa com que Sávio de Almeida costumava tratar as pessoas com quem convivia – de estudante a pesquisador. “Arejar e inovar no ambiente intelectual sempre foi uma preocupação de Sávio de Almeida, um verdadeiro caçador de novos talentos, pessoas a quem dedicava tempo precioso na orientação, no estímulo cotidiano, provocando estudos e pesquisas em todas as áreas”, enfatiza Ênio Lins.
Ele lembra que o Arquivo Público de Alagoas sempre foi uma das preocupações de Sávio de Almeida. Segundo o ex-secretário, sua parceria com a instituição vem desde a época de criação do APA, ainda no comecinho dos anos 1960, quando o professor Moacir Medeiros de Santana moveu mundos e fundos para fundar a “repartição”, como se falava antigamente.
Não por acaso, ainda em vida, Sávio de Almeida – falecido no dia 10 de fevereiro de 2023, aos 80 anos – decidiu doar para o Arquivo Público todo o seu acervo pessoal, composto de mais de 10 mil documentos, entre itens pessoais, manuscritos de livros, teses de doutorado, dissertações de mestrados, pesquisas indígenas e com religiões de matrizes africanas. A relação completa de documentos pode ser conferida no site do APA (www.arquivopublico.al.gov.br).
O único pedido do professor foi de que o acervo não se separasse – ou seja, não fosse espalhado por instituições diferentes – e que recebesse o título de Coleção Sávio de Almeida, no que Wilma Nóbrega concordou de pronto, por achar muito justo. “Ganhamos o maior presente”, comemorou a superintendente do APA.
A operação para o repasse do conjunto de documentos envolveu Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Fundação Universitária de Desenvolvimento de Extensão e Pesquisa (Fundepes) e o próprio Arquivo Público. Comandado pelo professor Danilo Marques, coordenador geral do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) da Ufal, o trabalho de catalogação teve início em 2022 e se estendeu por um ano e meio.
Segundo o chefe substituto de Divisão do Iphan, Maicon Fernando Marcante, toda a proposta de catalogação do acervo, que foi encaminhado pelo próprio Sávio de Almeida ao instituto, há cinco anos, foi construída em diálogo com o professor. “A gente entendeu que a documentação deveria ficar no Arquivo Público, não só pela questão de conservação, mas pela disponibilidade dela, para torná-la pública para pesquisa”, ressaltou.
Depois de fazer todo o alinhamento das ações de catalogação, Maicon Marcante passou os trabalhos de separação de documentos para o pesquisador Lucas Paranhos Netto Bernardes, da Fundepes. Ao lado de bolsistas do Neabi, ele dividiu o acervo em 16 séries – docência, documentos pessoais, periódicos, teses, dissertações, monografias, entre outras – e subséries. “É um acervo riquíssimo, provavelmente o maior material etnográfico de Alagoas”, defendeu Lucas.
Ele conta que há mais de 300 fitas cassetes com entrevistas feitas pelo professor Sávio de Almeida com líderes de povos indígenas de comunidades como Kariri-Xocó (Porto Real do Colégio), Xucuru-Kariri (Palmeira dos Índios) e Kalankó (Água Branca), entre outras, além de depoimentos em áudio de lideranças de religião de matriz africana. “Esses registros de áudio são muito relevantes para pensar a história recente, a memória dos povos indígenas de Alagoas e dos povos de religião de matriz africana”, destacou Maicon.
“Luiz Sávio de Almeida foi um dos mais expressivos e mais prolíficos intelectuais de Alagoas, e possuidor de uma grande qualidade: investir em mentes mais jovens no caminho acadêmico. E em seus arquivos pessoais se preservam acervos importantíssimos sobre suas próprias pesquisas e sobre os estudos das mentes brilhantes que o tiveram como mestre o orientador ao longo de quase meio século”, emendou Ênio Lins.
Autor teatral – escreveu peças de sucesso como como A Farinhada (1998) e A Igreja Verde (1998) –, Sávio de Almeida dedicou um bom tempo de pesquisa sobre a dama do teatro alagoano Linda Mascarenhas, que ganhou uma série especial no acervo que chega ao Arquivo Público. “São documentos raros, com objetos pessoais, fotografias e correspondência da atriz”, contou Lucas.
A superintendente do Arquivo Público ressaltou que, a partir de agora, qualquer pessoa pode ter acesso à Coleção Professor Sávio de Almeida. Basta, para isso, se cadastrar como pesquisador no site da instituição, selecionar a série documental de seu interesse e mandar um e-mail para alarquivopublico@gmail.com. Quem preferir, pode ligar para o 3315-7879 e agendar visita.
Para se ter uma ideia do que representa o acervo de Luiz Sávio de Almeida, quando a equipe envolvida na catalogação foi depositar o material no Arquivo Público, Lucas Bernardes ficou por algum tempo contemplando o material nas estantes da instituição. “Fiquei olhando sem querer me despedir. Quando você pega a documentação, em princípio você não conhece, mesmo sabendo quem é o professor Sávio de Almeida. No final, você começa a entender a biografia, as linhas de pesquisas. A sensação é de intimidade”, lembrou.
“Infelizmente, ele não está mais entre nós para participar do seminário que nós vamos fazer sobre o acervo [dele]. É uma pena ele não poder estar nesta entrevista aqui, mas a gente está dando continuidade ao desejo dele”, emendou Maicon Marcantes.
Ele estava. Impregnando de memórias o imenso vão do Arquivo Público de Alagoas.