Essequibo: por que Brasil colocou tropas e diplomatas de prontidão com disputa entre Venezuela e Guiana
O referendo convocado pelo regime de Nicolás Maduro tem cinco perguntas, mas o cerne é sobre se a população apoia ou não a criação de um Estado venezuelano dentro da região conhecida como Essequibo, uma área de pouco mais de 159 mil quilômetros quadrados (maior que o Estado do Ceará) que é alvo de uma disputa territorial com mais de 100 anos e que é hoje administrado pela Guiana.
A preocupação com o resultado do referendo se dá por conta das suas possíveis consequências práticas. A criação do Estado venezuelano poderia implicar na perda, pela Guiana, de pouco mais de 70% do seu território.
Na sexta-feira (30/11), a Corte Internacional de Justiça expediu uma decisão sobre um pedido feito pela Guiana que solicitava que a corte impedisse a realização do referendo. A corte não se manifestou sobre a suposta ilegalidade do referendo, mas disse, em sentença, que a Venezuela não poderia tomar nenhuma medida que “modificaria a situação que atualmente prevalece no território em disputa”.
Analistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que o resultado deverá ser favorável à criação do novo Estado venezuelano em terras hoje sob administração da Guiana e a principal dúvida é: até onde o regime de Maduro estaria disposto a colocar o plano em prática?
Em visita à região no final de outubro, o presidente da Guiana, Irfaan Ali, declarou que o país não abriria mão de Essequibo.
“Que ninguém cometa um único erro. Essequibo é nosso, cada centímetro quadrado”, disse.
Em meio a esse cenário de tensão entre dois países sul-americanos, o governo brasileiro mobilizou tropas e diplomatas para evitar uma escalada na crise.
Na quarta-feira (28/11), a poucos dias do referendo, o Ministério da Defesa anunciou que acompanha o caso e que aumentou as ações na região.
“O Ministério da Defesa tem acompanhado a situação. As ações de defesa têm sido intensificadas na região da fronteira ao Norte do país, promovendo maior presença militar”, disse a pasta em nota enviada à BBC News Brasil.
Especialistas e duas fontes diplomáticas brasileiras ouvidas em caráter reservado dizem que a realização do referendo preocupa o governo brasileiro por colocar em risco o que classificam como tradição de resolução pacífica de conflitos territoriais na América do Sul.
Os diplomatas avaliam que a perspectiva de uma iniciativa militar dos venezuelanos sobre o território é vista como remota, mas que o tema deve ser tratado com cautela, especialmente porque a Venezuela realizará eleições presidenciais em 2024 e o assunto poderia ser usado politicamente por Maduro como plataforma de sua campanha.
Consultas e tropas mobilizadas
Fontes diplomáticas ouvidas pela BBC News Brasil contam que a preocupação do Brasil com o assunto tem alguns meses. No dia 9 de novembro, o presidente brasileiro e da Guiana conversaram por videoconferência e, segundo um diplomata brasileiro, o presidente guianense expressou suas preocupações sobre o referendo a Lula (PT).
Duas semanas depois, no dia 22 de novembro, Lula enviou o assessor-especial para assuntos internacionais, o embaixador Celso Amorim, a Caracas. Ele se reuniu com Nicolás Maduro na capital venezuelana e ambos teriam, segundo as duas fontes, conversado longamente sobre o assunto.
Uma das fontes ouvidas pela BBC News Brasil disse que, ao longo da conversa, Maduro teria tentado tranquilizar Amorim sobre as reais intenções do seu governo em relação à região. O brasileiro, por sua vez, teria expressado sua preocupação com o tema e reforçado a posição de que a disputa seja resolvida de forma pacífica.
Dias depois, integrantes dos Ministérios das Relações Exteriores e da Defesa passaram a analisar, conjuntamente, a crise na região.
Foi a partir dessa análise que, na quarta-feira, o Ministério da Defesa divulgou a nota em que anuncia a intensificação das ações de defesa na fronteira. A região de Essequibo faz divisa com a fronteira norte do Brasil, especificamente com o Estado de Roraima.
De acordo com o jornal Folha de S. Paulo, houve o deslocamento de 200 militares e veículos blindados sobre rodas para um pelotão de fronteira localizado na cidade de Pacaraima, em Roraima, no extremo norte do país. Também teria havido o transporte de munição.
Um dos diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil avalia que a crise preocupa o Itamaraty porque um conflito entre os dois países romperia com a tradição pacífica de disputas territoriais na região e porque aconteceria em uma área extremamente próxima ao Brasil.
Estima-se que 300 mil pessoas vivam em Essequibo e um conflito poderia ter impactos econômicos e sociais nas áreas brasileiras próximas.
Havia a previsão de que Lula e o presidente guianense se encontrassem em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, durante a passagem de ambos pelo país para a cúpula do ONU sobre o clima (COP 28), mas a reunião bilateral acabou não ocorrendo.
Um elemento que também causa preocupação junto ao governo brasileiro é a incerteza sobre o processo decisório dentro do governo Maduro.
Em novembro, segundo o jornal Folha de S. Paulo, emissários do governo Venezuelano disseram que, a depender do resultado do referendo, o governo de Caracas poderia “ser forçado pelo povo” a agir.
As declarações teriam sido dadas durante um encontro de ministros da Defesa e de Relações Exteriores da América do Sul, em Brasília.
Logo após a decisão da Corte Internacional de Justiça sobre a disputa, Maduro foi às redes sociais dizer que não reconhece a instância como instrumento para resolver a disputa com a Guiana e voltou a convocar a população a participar do plebiscito.
“Não podem minar o direito da comunidade venezuelana de se expressar através do voto”, disse Maduro.
O temor entre parte da diplomacia brasileira é que Maduro explore a disputa sobre Essequibo de forma política para tentar mobilizar mais votos nas eleições do ano que vem.
Essa possibilidade também é cogitada pelo professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Lucas Carlos Lima.
“Sem dúvida a decisão do referendo e o discurso de recuperação de um território supostamente perdido por uma ilegalidade é algo que move o espírito nacional e pode ser um argumento nas eleições. Sabemos que apelos ao nacionalismo podem ser fatores extremamente decisivos numa eleição. Isso pode também servir de teste da popularidade do atual governo”, disse à BBC News Brasil.
Em outubro deste ano, o governo e a oposição da Venezuela assinaram um acordo prevendo regras para as eleições presidenciais de 2024 que incluem a atuação de missões de observação da Organização das Nações Unidas e da União Europeia.
Conflito na vizinhança?
Especialistas em Relações Internacionais ouvidos pela BBC News Brasil se dividem quanto à possibilidade de que a crise em torno de Essequibo possa resultar em um conflito armado.
“Acredito que o custo político de uma ação militar da Venezuela é muito alto. Ao fazê-lo, a Venezuela estaria violando o Direito Internacional e poderia gerar diferentes reações tanto da comunidade internacional quanto dos países da região”, disse o professor Lucas Carlos Lima. “Acredito que o custo é muito alto para ser factível”, complementou.
Já para o professor aposentado de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria e ex-representante da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti, Ricardo Seitenfus, o referendo colocaria Maduro sob pressão, o que poderia levá-lo a escalar a crise.
Ele chama o referendo convocado pela Venezuela de “consulta” por considerá-lo “ilegal” do ponto de vista do Direito Internacional uma vez que o território sobre o qual ele se destina não pertenceria, atualmente, à Venezuela.
“Maduro terá um problema pós-consulta: o que fazer com uma vitória que se anuncia acachapante? Desconhecer o resultado é impossível. Ele pode aumentar a pressão na fronteira? Sim. Invadir, no que seria um passeio militar? É provável. Esse day-after (dia seguinte) está carregado de perigos, pois os Estados Unidos, o Reino Unido, a Colômbia e o Brasil reagirão”, disse Seitenfus à BBC News Brasil.
Seitenfus comparou Maduro ao ditador argentino Leopoldo Galtieri que, em 1982, determinou a ocupação das Ilhas Malvinas e foi derrotado militarmente por tropas inglesas. A derrota é vista como um dos elementos que antecipou o fim da ditadura militar na argentina que durou entre 1976 e 1983.
“Caso não se contenha, Maduro será o futuro Leopoldo Galtieri”, disse.
O que é o Essequibo?
Essequibo é como ficou conhecida uma área de aproximadamente 159 mil quilômetros quadrados (equivalente a pouco mais que o Estado do Ceará) situada entre a Venezuela e a Guiana.
A região é rica em minerais como ouro, cobre, diamante e, recentemente, lá também foram descobertos enormes depósitos de petróleo e outros hidrocarbonetos.
O referendo que ser realizado neste domingo remonta uma disputa iniciada ainda no século 19 durante o processo de independência das ex-colônias espanholas. Em 1811, a Venezuela tornou-se independente e a região de Essequibo passou a fazer parte do país.
Três anos depois, porém, o Reino Unido comprou a então Guiana Inglesa por meio de um tratado com os Países Baixos. O tratado de compra, no entanto, não definiu com precisão qual seria a linha de fronteira do país com a Venezuela.
Em 1840, o Reino Unido nomeou o explorador Robert Shomburgk para definir essa fronteira e uma linha, chamada Linha Schomburgk, foi inaugurada.
Com ela, a então Guiana Inglesa passou a ter 80 mil quilômetros quadrados adicionais em relação ao território inicialmente adquirido dos Países Baixos.
Em 1841, começou oficialmente a disputa pelo território com denúncias sobre uma incursão indevida do Reino Unido no território.
Nas décadas seguintes, a controvérsia em torno de Essequibo passou a fazer parte da disputa por influência na América do Sul entre os Estados Unidos, uma potência então em ascensão, e o então poderoso Império Britânico.
Os norte-americanos expandiram seus interesses pela região e usavam como argumento a chamada Doutrina Monroe ,cujo slogan era “América para americanos”. A postura representava, na prática, uma tentativa de limitar a influência das potências europeias sobre o continente.
Em 1886, uma nova versão da Linha Schomburgk foi traçada, incorporando uma nova porção de território à Guiana Inglesa.
Nove anos depois, em 1895, os Estados Unidos, então aliados da Venezuela, denunciaram a definição da fronteira e recomendaram que o caso fosse definido por meio de uma arbitragem internacional.
Três anos mais tarde, em 1899, foi emitida a Sentença Arbitral de Paris, que decidiu de forma favorável ao Reino Unido.
Meio século depois, em 1949, porém, veio a público um memorando de um advogado norte-americano que atuou na defesa da Venezuela no processo de arbitragem em Paris.
O documento denunciava uma suposta imparcialidade dos juízes do caso. A divulgação desse memorando e de outros documentos do processo passaram a ser usados pela Venezuela para pedir que a Sentença de Paris fosse considerada “nula e sem efeito”.
Em 1966, porém, o país e o Reino Unido firmaram o Acordo de Genebra, que reconheceu a reivindicação venezuelana e se comprometeu a buscar soluções para resolver a disputa.
Mais recentemente, a Guiana solicitou que a Corte Internacional de Justiça, sediada em Haia, na Holanda, arbitre a disputa, mas o governo venezuelano vem, reiteradamente, negando a legitimidade da instituição para decidir o futuro de Essequibo.
Reinício da disputa
Apesar de a disputa territorial entre os dois países ter mais de um século de existência, as tensões passaram a se intensificar a partir de 2015, quando a petroleira norte-americana ExxonMobil anunciou ter encontrado enormes depósitos de petróleo na costa da área disputada.
Até o momento, a multinacional americana ExxonMobil e os seus parceiros fizeram 46 descobertas que elevaram as reservas de petróleo da Guiana para cerca de 11 bilhões de barris, representando cerca de 0,6% do total mundial.
As descobertas, consideradas surpreendentes, tornaram a Guiana, um país de 800 mil habitantes, numa das economias que mais crescem no mundo. O produto interno bruto (PIB) do país deverá crescer 25% este ano. Em 2022, o aumento no PIB foi de 57,8%.
A exploração de petróleo na costa de Essequibo é um dos pontos mais criticados pelo regime venezuelano nos últimos anos.
O governo questiona, por exemplo, a emissão de licenças de exploração para multinacionais que atuam na costa da região em disputa.
“A Guiana não é uma vítima, não tem títulos sobre o território em disputa, é uma ocupante de fato e tem violentado reiteradamente o acordo de Genebra e a legalidade internacional, outorgando unilateralmente concessões no território terrestre e em águas de delimitação pendente”, disse o governo venezuelano.
A equipe jurídica da Guiana, que denunciou o referendo perante o tribunal internacional, descreve-o como uma “ameaça existencial” que procura preparar o caminho para a anexação de Essequibo pela Venezuela.
O papel do Brasil
Os diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que o país vem enviando mensagens claras ao governo venezuelano sobre a inviabilidade de uma escalada na crise com a Guiana.
Uma demonstração disso, segundo eles, seria a manifestação do ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, durante a reunião em que enviados da Venezuela teriam elevado o tom sobre o referendo, em Brasília.
“O nosso compromisso comum com a integração da América do Sul é reiterarmos — cada um de nossos doze países — o nosso compromisso com a solução pacífica das controvérsias”, disse o chanceler na ocasião.
Para Lucas Carlos Lima, da UFMG, o Brasil tem tentado evitar um aumento nas tensões na região.
“O Brasil também tem uma parte de suas fronteiras com a Guiana determinada por arbitragem e acredito que não deseja que esse tipo de assentamento pacífico se transforme em contestações. Os bastidores diplomáticos sugerem que o Brasil está interessado em restabelecer relações estáveis com a Venezuela e, para isso, está voltado a não escalar o conflito”, disse o professor.
Já o professor Ricardo Seitenfus avalia que o país deveria ser mais contundente em suas manifestações sobre o referendo venezuelano.
“O Brasl não pode ser conivente com nada que venha a abalar o princípio da paz sul-americana […] O Brasil precisa se manifestar de forma contundente a respeito desse referendo e deixar claro que essa consulta é nula, pois só quem pode decidir sobre o destino de Essequibo é a população de Essequibo e não o povo da Venezuela”, conclui o professor.