Qual é a origem da obsessão dos argentinos pelo dólar
- Author, Matías Zibell
- Role, BBC News Mundo
Costuma-se dizer que os argentinos acordam todas as manhãs e verificam três informações essenciais: o clima, o trânsito e a cotação do dólar.
“O valor da moeda norte-americana integra as informações básicas comunicadas pela imprensa argentina. Principalmente em tempos de turbulência monetária”, afirmam Mariana Luzzi e Ariel Wilkis em seu livro El dólar: Historia de una moneda argentina (1930-2019) (“Dólar: História de uma moeda argentina”, em tradução livre, sem edição no Brasil).
Em entrevista à BBC News Mundo (serviço da BBC em espanhol), Luzzi diz que o dólar tem “duas vidas” na Argentina.
Uma delas é a privada, que é a condição de moeda com a qual os argentinos poupam ou adquirem bens duráveis como casas ou apartamentos. E outra é a vida pública, que ela considera mais importante.
“É isso que faz a cotação do dólar aparecer em todos os nossos celulares, que ela chegue até nós pelo aplicativo do banco onde temos conta ou pela carteira eletrônica que usamos. Que liguemos a televisão e ela apareça no mesmo lugar que a temperatura a partir das 10h da manhã, quando o mercado abre. E que esteja na boca do povo, na piada, no meme.”
Mas a questão não é apenas quantas “vidas” o dólar tem na Argentina, mas também a quantidade de dólares diferentes que existem no país.
“Há uma obsessão pelo dólar que se baseia em fatos econômicos, mas também há uma coisa ilusória: as pessoas dizem: ‘Como está o dólar hoje? Como ele acordou?’ É como um monstro com vida própria. Também tem múltiplas facetas, porque há muitas cotações do dólar. Nem sei quantas são”, diz Patricio Barton, comunicador e apresentador de rádio.
Ele tenta listar de memória as diversas cotações.
As cotações do dólar, segundo Patricio Barton
Há o dólar oficial, que é o ponto de partida, com o qual são realizadas as operações de exportação e importação.
Depois, há o dólar blue, que normalmente vale o dobro da cotação oficial; é a referência das ruas, o dólar ilegal que alguns meios de comunicação chamam de “informal” como eufemismo.
Temos o dólar turístico, que é o que os turistas compram. Há o dólar Catar, taxa com a qual foram administradas as despesas com cartão dos argentinos que foram à Copa do Mundo.
O dólar luxo é para bens de luxo comprados na Argentina. Existe um dólar soja para os produtores de soja.
O dólar líquido, que são dólares de reserva bancária. O dólar futuro, que é uma “profecia” de como será o dólar daqui a um ano.
O dólar Coldplay foi uma cotação para a banda que fez uns 10, 15 shows em estádio na Argentina, ou seja, ganharam muito dinheiro que teve que ser pago a eles.
Existe o dólar de “cabeça grande” e o dólar de “cabeça pequena”, que são as efígies dos heróis americanos que estão impressas nas notas de dólar. Aqui, não se compram as notas “de cabeça pequena”, mesmo elas sendo perfeitamente legais, ou te dão menos dinheiro por elas.
Se dá inclusive nomes a dólares que não existem. Se você quer trocar dólares comigo e eu digo “bom, esse é o dólar amigo”, é porque estou te dando com uma taxa de câmbio amigável.
O verde e os ‘arbolitos’
Não apenas as cotações têm nomes próprios na Argentina: também foi criada uma linguagem particular em torno do dólar, das pessoas que compram e vendem a moeda, do local onde ocorrem essas transações, e assim por diante.
“Verde: dólar, unidade monetária dos Estados Unidos.”
A definição consta da terceira edição do dicionário da Academia Argentina de Letras.
“É raro ter lexicalizada uma palavra coloquial para uma moeda estrangeira. A lexicalização significa que uma palavra que tinha um significado adquiriu outro completamente diferente. É um fenômeno poderoso”, diz Santiago Kalinowski, diretor do Departamento de Linguística da Academia à BBC News Mundo.
“Verde”, além disso, serve para nomear outra das paixões argentinas: o mate.
Mas há muitas outras palavras que surgem da paixão dos argentinos pelo dólar.
O ABC do dólar na língua argentina, segundo Santiago Kalinowski
A primeira definição de arbolito (arvorezinha, em português) era “pessoa que recebe apostas clandestinas”, mas os falantes costumam aproveitar algo que já conhecem para se referir a uma realidade nova.
A segunda definição de arbolito se aplica a pessoas que, nas ruas, se oferecem para trocar dólares com o grito “cambio, cambio”. Essas pessoas se concentram principalmente nos entornos da City portenha, como é chamada a região do centro de Buenos Aires que concentra as sedes das principais instituições financeiras do país.
“Arbolito: Doleiro ilegal que trabalha em vias públicas.”
Para mim, o uso da palavra arbolito tem a ver com a atitude física na via pública, que é ficar ali como se fosse uma arvorezinha, “plantado na calçada”.
Com B temos “bicicleteo” (pedalada), que se refere a todas essas especulações de vender dólar pela manhã, comprar dólar à tarde; todo esse labirinto especulativo que temos.
Com o C há a “cueva” (caverna), “agência de câmbio ilegal”. Há também “cuevero”, algo “relacionado à cueva de câmbio” ou “membro ou funcionário de uma cueva de câmbio”.
E a história continua: na letra D, também temos “dolarizar” e “desdolarizar”…
Por quê?
Luzzi indica que há duas grandes explicações econômicas para a obsessão pelo dólar na Argentina: uma ela atribui ao efeito da inflação persistente e a outra, que não exclui o fator inflacionário, à condição de economia periférica.
A segunda refere-se, basicamente, ao fato de o país “gerar através da exportação de produtos e serviços menos dólares do que necessita para importar bens e serviços e para pagar serviços públicos”.
Esta situação agrava-se, acrescenta a socióloga, quando se contrai mais dívida externa, “porque a qualquer saída de dólares para, por exemplo, pagar importações, é necessário adicionar os dólares que são necessários para pagar a dívida que foi contraída”.
O economista Fausto Spotorno comenta a questão do fator inflacionário.
“O dólar é o instrumento que o argentino usou para combater a inflação, para enfrentar a destruição histórica do peso pela política econômica argentina, o que não é novo, tem 80 anos”, diz o diretor da Escola de Negócios da Universidade Argentina da Empresa (Uade).
Assim, a única forma de poupar para a grande maioria dos argentinos não tem sido a moeda nacional, mas a moeda americana.
Isso exclui, é claro, aqueles que têm os recursos e o conhecimento para utilizar outros instrumentos financeiros, como ações ou títulos de dívida, ou que simplesmente não têm a possibilidade de poupar.
Além da poupança, há outro uso para o dólar, explica Spotorno.
“Se eu quiser fazer uma transação imobiliária, por exemplo, tenho que pagar em dólar. Por quê? Porque, se eu quisesse usar pesos, precisaria alugar um caminhão para colocar todas as notas que seriam necessárias em uma transação.”
Desde quando?
Para Spotorno, não há dúvida: tudo começou em 1946, quando o governo de Juan Domingo Perón nacionalizou o Banco Central argentino.
“E a partir de 1946, exatamente no mesmo ano em que nacionalizamos o Banco Central, a inflação apareceu: foi de 26% naquele ano e não parou até chegarmos à hiperinflação em 1989″, lembra Spotorno.
Esta lua de mel com o dólar terminou em dezembro de 2001 com um divórcio brutal. As poupanças em dólares foram confiscadas pelo Estado e devolvidas em pesos no famoso “corralito” (outra palavra que consta do dicionário da Academia Argentina de Letras).
Tanto antes de entrar na conversibilidade, como antes de sair dela, especulou-se sobre uma possível dolarização da economia argentina, o que, no entanto, nunca foi concretizado.
Mas Luzzi ressalta que o fato de a Argentina ter inflação desde meados do século passado não significa que as pessoas começaram imediatamente a comprar dólares. Isso exigiu, como ele coloca, um processo de “familiarização com um elemento que antes estava completamente fora do repertório” local.
O especialista indica que o primeiro momento em que a moeda norte-americana foi capa dos jornais argentinos e virou notícia foi em janeiro de 1959, quando o presidente Arturo Frondizi lançou seu plano de estabilização.
“De 1931 [ano da primeira regulamentação do mercado de câmbio na Argentina] até 1959, a discussão sobre se o Estado deve intervir no mercado de câmbio, ou se o câmbio está caro ou barato, era uma discussão de especialistas em economia, de exportadores e importadores, mas não era uma discussão da agenda pública”, afirma.
É a partir de 1959 – em meio a um debate sobre a inflação, mas também sobre a abertura ao capital internacional e aos investimentos estrangeiros – que ocorre um processo de popularização do dólar, que só aumentou desde então.
E até virou motivo de piadas.
Em 1962, o comediante Mauricio Borensztein, mais conhecido como “Tato” Bores, questionou num famoso monólogo televisivo por que o dólar estava sempre em alta.
“Quando o Boca [Juniors] perde, o dólar sobe três mangos [pesos]; no domingo que o Boca vence, o dólar sobe quatro mangos. Anunciam frio para agosto e, pimba, o dólar se perde de vista. Um ministro renuncia, as pessoas se assustam, o dólar fica 8 pesos mais caro. Vem um ministro novo, o povo compra dólares até as orelhas.”
Na segunda metade da década de 1970 – com a liberalização do mercado cambial e a política de abertura financeira do regime militar –, Luzzi indica que o dólar deixou de ser uma informação relevante para se tornar uma ferramenta de operações diárias.
O processo inflacionário que duraria uma década, incluindo os sete anos de ditadura (1976-1983), deu o toque final à valorização do dólar, que se tornou o principal método de poupança.
“O peso já não servia mais”, diz Luzzi.
O peso
Não se pode falar da obsessão dos argentinos pelo dólar sem falar de sua relação conflituosa com a moeda nacional argentina, que mudou quatro vezes nos últimos 50 anos.
Embora a Argentina tenha tido a mesma moeda (o peso moneda nacional) de 1881 a 1970, a partir de então a inflação obrigou-a a mudar de nome (peso ley, peso argentino, austral, peso) e a remover zeros das notas com frequência crescente.
Juntamente com os golpes de Estado (seis no século 20), a constante desvalorização da moeda tem sido um dos traumas permanentes deste país.
“Para mim, a argentinidade sofre de transtorno de estresse pós-traumático”, diz a psicóloga clínica Alicia Blanco.
“Temos uma espécie de infância de abusos e, sobretudo, uma mensagem dúbia. Mensagens dúbias para uma criança geram transtornos psicológicos”, afirma.
As “mensagens dúbias” – dizer uma coisa e fazer outra – têm sido muito típicas da história dos argentinos com o peso e o dólar.
Lorenzo Sigaut, que foi ministro da Economia de abril a dezembro de 1981, durante o governo ditatorial de Roberto Eduardo Viola, de fato disse que “quem aposta no dólar perde”. Poucos dias depois, o peso se desvalorizou em 30%.
No “corralito”, um governo democrático aprovou uma lei de intangibilidade dos depósitos (que pretendia proteger todos os depósitos, à vista ou a prazo, em pesos ou moeda estrangeira, proibindo o Estado nacional de alterar condições pactuadas entres depositantes e instituições financeiras) e poucos meses depois, confiscou todos os depósitos em dólares.
Aproveitando que, além de comprar dólares e tomar mate, muitos argentinos frequentam regularmente o psicólogo, perguntamos a Alicia Blanco como ela descreveria a relação entre os argentinos, o dólar e o peso, se fossem à terapia.
Madame Bovary e o dólar, segundo Alicia Blanco
A argentinidade está ligada ao peso argentino, um peso que é como ter um par desvalorizado 800 vezes, maltratado, de nome trocado.
Ele ou ela não têm identidade. Você olha e diz: “Com quem eu me casei? Quem eu escolhi?”
Aí você começa a fantasiar, como em qualquer relacionamento onde não se está satisfeito, onde não se está feliz.
Você olha para o lado e vê o dólar, o loiro de olhos azuis que durante 70 anos teve o respaldo do ouro.
Então você vê o magnata e se apaixona por ele, desenvolvendo uma paixão que é o que chamo de paixões destrutivas.
Podemos tomar como exemplo o modelo de Madame Bovary.
Ela tem marido e se apaixona por um amante que é um chantagista que a trai, que a manipula de todas as maneiras possíveis, mas ela acredita em tudo e o ama profundamente a ponto de querer abandonar o marido e o filho.
E aí o cara, quando ela vai procurá-lo, não está lá. E ela comete suicídio. Este é o modelo de paixão destrutiva por excelência.
É como uma ansiedade, ou seja, ela não pode obter o que quer, mas continua desejando, e o desejo é o que a mantém nesse lugar. Ela sofre com o anseio, mas por causa da ânsia também recupera aquele olhar para o amante que é inatingível.
Sem bússola
Em outubro de 2023, o Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec) da Argentina informou que a inflação de setembro foi de 12,7%, o valor mensal mais alto dos últimos 32 anos. E a taxa acumulada em 12 meses ultrapassou 138%.
“O que acredito que acontece com regimes de inflação tão elevados como estes, ao nível da experiência pessoal, é que num momento já não se tem referências, os preços relativos se perdem, já não se sabe o que é caro e o que é barato”, afirma o filósofo Eial Moldavsky.
“Dois pares de tênis valem o mesmo que um aluguel. E você me pergunta: ‘Está errado, está certo?’ Não sei, não tenho como te dizer”, exemplifica.
A ausência de referenciais impede qualquer possibilidade de planejamento, diz Moldavsky.
“É muito difícil ter um emprego e saber se, com aquele salário que você negociou em março e que lhe pareceu bom, você vai conseguir passar o ano de forma razoável, pagando aluguel e tendo mais ou menos uma vida normal.”
No seu Instagram, onde 1,5 milhão de pessoas o seguem, Moldavsky analisa situações do cotidiano e temores existenciais como o medo da rejeição ou o sentimento de culpa, enquanto passa roupa, rega plantas e arruma a casa.
No meio do vídeo ele apresenta o pensamento de um filósofo que serve de referência para a compreensão desses problemas.
Perguntamos a ele: se o vídeo fosse sobre os argentinos e o dólar, a qual filósofo recorreria?
Hannah Arendt e as ilhas num oceano de caos, por Eial Moldavsky
É muito difícil, na verdade, saber qual marco teórico se enquadra em algo tão complicado como isso.
Entendo que a relação da Argentina com o dólar tem a ver com a dificuldade que o país teve em construir estabilidade e previsibilidade; e bem, o dólar apareceu como uma resposta quase intuitiva.
Se quiséssemos traçar um paralelo, pensaríamos em algo como o que a filósofa alemã Hannah Arendt diz sobre o futuro, como um mar completamente infinito, impossível de gerir e de prever. Cheio de indecisões, de coisas que não controlamos, de coisas que não sabemos.
E tenta-se criar pequenas ilhas para resistir ao caos que é o futuro imprevisível.
O dólar parece ser algo assim, a ilha que os cidadãos argentinos encontraram intuitivamente em momentos de crise.
Parece-me que o dólar apareceu como uma reserva de estabilidade no meio de todo esse caos.