‘Nos venderam uma falsa ilusão’: o sofrimento de mulheres com o método contraceptivo Essure anos depois da proibição
Após ter seu quarto filho, em 2012, a brasileira Kelli Patrícia da Luz, 43, esperava há mais de dois anos por uma laqueadura no sistema público de saúde quando recebeu uma ligação de um dos hospitais públicos de sua cidade, Brasília.
A alternativa oferecida à Kelli parecia ainda melhor do que o esperado.
“Me convidaram para uma palestra e apresentaram o Essure para mim. Eles descreveram o dispositivo como um método revolucionário, sem cortes, sem dor, sem necessidade de afastamento do trabalho ou das atividades diárias. Logo aceitei que era a melhor opção”, diz Kelli.
Havia apenas uma limitação: caso ela se arrependesse de usar o dispositivo, foi informada de que o procedimento seria irreversível.
A remoção do dispositivo exigiria uma histerectomia completa (retirada do útero e colo do útero). Ela assinou um termo de responsabilidade.
O procedimento de inserção do Essure era feito por histeroscopia, usando um dispositivo fino semelhante a uma caneta. O médico inseria o dispositivo através do colo do útero para observar a cavidade uterina e as aberturas internas das trompas de falópio, onde o Essure se ajustava como uma mola.
No Brasil, a alternativa esteve disponível entre 2009 e 2017, quando foi suspenso temporariamente. Dois anos depois, em 2019, a Anvisa proibiu oficialmente o Essure, classificando o contraceptivo com “risco máximo” por possibilidade de efeitos colaterais graves.
“O primeiro desafio estava relacionado à técnica da histeroscopia, já que o profissional precisar posicionar a espiral nas aberturas das trompas com extrema precaução para evitar perfurações”, explica Carlos Politano, membro da Comissão de Anticoncepção da FEBRASGO (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia).
Segundo o fabricante, após o procedimento, ao longo de aproximadamente três meses, o corpo desenvolveria uma reação orgânica de cicatrização local ocluindo o canal definitivamente e impedindo o encontro entre espermatozóide e óvulo.
Embora o Essure não tenha sido incorporado como uma tecnologia disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), o dispositivo ficou disponível em hospitais públicos de capitais do Brasil, como Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, que estão associados ao SUS, como uma opção para minimizar a longa fila de espera de mulheres que esperavam uma laqueadura gratuitamente.
“A divulgação e avaliação clínica do Essure ocorreram principalmente em hospitais públicos. O custo era alto para se oferecer em clínicas particulares, de forma que deve ter ocorrido algum acordo – de custo menor ou oferta para divulgação – no sistema público”, afirma Politano.
No Hospital Materno Infantil de Brasília – HMIB, vinculado ao SUS, Kelli teve o Essure implantado com animação e sem dúvidas. Afinal, o dispositivo, criado em 2001 com a promessa de ser uma alternativa melhor à laqueadura, já estava, na época, sendo usado há mais de uma década em diferentes países.
O Essure foi aprovado pelo FDA (Food and Drug Administration), a agência reguladora de saúde americana, para uso nos EUA, em 2002, e logo entusiasmou a classe médica pelo mundo, ganhando adeptos de vários países – além do Brasil, Canadá, Austrália e várias nações europeias.
A farmacêutica Bayer comprou o Essure em 2013, e em 2015, revelou ao New York Times que o método era usado em pelo menos 23 países e mais de 750,000 dispositivos já haviam sido implantados.
Os efeitos permanentes do Essure
Mas foi também com o passar dos anos que notificações sobre problemas causados pelo método começaram a se acumular. Entre 4 de novembro de 2002, data de aprovação do Essure, até 31 de dezembro de 2022, a FDA recebeu 69.249 relatórios descrevendo problemas relacionados ao Essure.
Os desafios mencionados incluíam dores fortes diversas, sangramentos, perfurações, dificuldades em relação à inserção ou retirada, entre outros. Entre as causas para os sintomas incômodos, diferentes materiais publicados, como o informativo do governo de Queensland, na Austrália, mencionam inflamação causada pelo dispositivo, reação alérgica aos materiais e migração do Essure para outro local (essa, mais rara).
Kelli começou a sentir dores logo após a implementação. “Esse é o efeito colateral mais comum, não só com o Essure, mas também com outros dispositivos, como o DIU. Acontece por que o material é colocado em um local onde, naturalmente, não foi desenvolvido para recebê-lo”, explica Politano.
Mas as cólicas não eram o único problema que ela relatava enfrentar.
“Após o procedimento, tive problemas intestinais, dores pélvicas, sangramento, dores nas articulações e enxaquecas intensas. Além disso, sofri com dores lombares terríveis que me impediam de caminhar”, Kelli conta.
Foi apenas em 2017 que denúncias graves de diversos efeitos colaterais sofridos por mulheres em vários países – muitos semelhantes aos de Kelli, e outros além – vieram a público. Foi o início da descontinuação do uso do Essure pelo mundo.
No mesmo ano, países como o Brasil, Canadá, e os integrantes da União Europeia suspenderam preventivamente o uso do método.
Nos EUA, o FDA passou a incluir um aviso de “caixa preta”, o que significa que o medicamento pode ter efeitos colaterais graves e, às vezes, que representam risco de vida.
Com uma queda de 70% nas vendas, a fabricante retirou o dispositivo do mercado americano em 2018, e na sequência, fez o mesmo nos outros países. Hoje, o Essure não é mais comercializado em nenhuma parte do mundo.
A proibição, no entanto, não mudou nada no dia a dia de mulheres que já tinham o dispositivo implantado. “Para quem se adaptou bem ao Essure, não havia indicação de qualquer mudança”, diz Politano.
É importante dizer, aponta o médico, que há mulheres que tiveram sucesso em seus implantes e continuam a viver bem o Essure nos dias atuais.
Já para uma parcela das usuárias do método, a esterilização definitiva veio com outros efeitos permanentes.
“Eu costumava ser uma mulher ativa com uma vida social normal, mas comecei a sentir dores pélvicas, cólicas fortes, sangramentos, dores nos seios e nas pernas, e dores de cabeça incapacitantes. Também desenvolvi alergia ao níquel [material presente no dispositivo], condição que afeta muito minha vida. Coça, dói e causa odores desagradáveis, o que me faz sentir auto consciente e isolada”, conta Liliane Feitosa, 44, de Brasília, capital do Brasil e mesma cidade de Kelli.
Ambas as mulheres também relatam dificuldade em encontrar profissionais da saúde que levassem seus sintomas a sério.
“Mesmo depois da proibição, se eu chegasse com dor no hospital, relatando todos os sintomas, os médicos diziam que não tinha nada a ver com o Essure, e vários se mostravam irritados. Isso ainda que muitos deles nem sequer conhecessem o método. Não sabiam, por exemplo, como era implantado ou se podia ser retirado”, explica Kelli.
Ela diz ter se sentido constantemente humilhada, e, nas idas ao pronto-socorro, descobriu que outras mulheres também estavam passando pelo mesmo em sua cidade, Brasília, capital do Brasil.
“Criei uma associação, a Vítimas do Essure – Brasília, para nos apoiarmos e trocar informações”.
“A Associação proporcionou um apoio psicológico que não tínhamos encontrado anteriormente nos serviços de saúde”, diz Shely Frazão, 40, que acabou procurando clínicas privadas para seu tratamento.
A Secretaria de Saúde do Distrito Federal, responsável pelo HMIB (Hospital Materno Infantil de Brasília), que realizou os implantes em Kelli, Shely e Liliane, afirmou à reportagem que à época da inserção, o dispositivo era autorizado pela Anvisa, além de ser utilizado mundialmente.
A pasta também afirmou que as pacientes que tiveram o sistema Essure implantado são acompanhadas na rede pública de saúde. Foi criado um guia específico para profissionais da saúde do DF possam acompanhar essas pacientes, que têm direito à remoção do útero se assim desejarem.
A Bayer mantém a declaração de que o dispositivo é seguro.
“A segurança do Essure é suportada por um robusto conjunto de dados de estudos científicos. Esses dados incluem os resultados de 10 estudos clínicos e mais de 70 estudos observacionais reais feitos pela empresa e por pesquisadores independentes ao longo dos últimos 20 anos, envolvendo mais de 270 mil mulheres”, disse à BBC News Brasil.
A Bayer afirma que o acordo nos EUA reflete uma decisão comercial motivada em grande parte pelos aspectos únicos do sistema de responsabilidade civil em massa americano e levando em conta os altos custos dos litígios no país.
“Nos casos solucionados nos EUA, não houve reconhecimento de transgressão, culpa ou responsabilidade da parte da Bayer nos acordos. Nos últimos meses, a Bayer obteve uma série de decisões favoráveis no Brasil. Estas decisões estão em linha com a defesa da companhia baseada na ciência a respeito da segurança e eficácia do Essure”, afirmou à reportagem.
Luta por compensação
Shely, que também sofria com efeitos semelhantes aos de suas colegas de associação, realizou uma histerectomia total, que incluiu a remoção do útero, colo do útero e trompas, bem como a extração do dispositivo Essure, no começo de 2023.
“Foi uma cirurgia abdominal semelhante à de uma cesariana, apesar de eu nunca ter tido cesariana antes, já que meus partos anteriores foram normais. Durante minha recuperação, desenvolvi aderências intestinais que causaram obstruções graves. Precisei passar por outra cirurgia em março de 2023, que me levou à UTI.”
Liliane estava para realizar a mesma cirurgia, mas descobriu uma lesão de grau três, que precisará ser tratada antes, em seu útero.
Kelli conseguiu a remoção, mas também teve problemas.
“Em 2017, quando fui ao hospital para a remoção, o médico garantiu que eu não precisaria tirar o útero. Acreditei e assim fiz.”
Mas as dores persistiram, o que levou Kelli a acreditar que o dispositivo possa ter se fragmentado ou causado uma inflamação crônica.
“Precisei passar por uma nova cirurgia, no hospital privado. Dessa vez foi uma histerectomia total.”
As três mulheres pretendem processar a Bayer, seguindo o exemplo do que foi feito nos Estados Unidos – a farmacêutica pagou US$ 1,6 bilhão (R$ 8 bilhões) para encerrar praticamente todos os processos judiciais do Essure nos EUA – e na Austrália – onde mais de mil mulheres aderiram a um processo grupal neste ano, alegando que o dispositivo causava dor, sofrimento e sangramento intenso.
Até o momento, no entanto, apenas Kelli conseguiu todos os documentos que seu advogado considerou necessários para dar entrada no processo.
“Alegamos que o produto Essure é defeituoso. A pretensão da Sra. Kelli na demanda judicial em referência é buscar uma compensação financeira diante de todos os danos físicos e emocionais causados em decorrência da utilização do dispositivo”, disse Érico Rodolfo Abreu de Oliveira, advogado da TODDE Advogados e representante do caso de Kelli, à reportagem.
A Bayer afirma que o acordo nos Estados Unidos reflete uma decisão comercial motivada principalmente pelas características únicas do sistema de litígios em massa dos Estados Unidos e considerando os altos custos judiciais no país.
“Nos casos resolvidos nos Estados Unidos, não houve reconhecimento de culpa, falha ou responsabilidade por parte da Bayer nos acordos. Nos últimos meses, a Bayer obteve uma série de decisões favoráveis no Brasil. Essas decisões estão em consonância com a defesa da empresa com base na ciência em relação à segurança e eficácia do Essure”, informou a Bayer à BBC News Brasil.