Caso das joias: decisão sobre competência do STF pode anular provas contra Bolsonaro?
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros convocados decidiram ficar em silêncio durante seu depoimento à Polícia Federal na última quinta-feira (31/8), no âmbito da investigação da suposta venda ilegal de joias presenteadas à Presidência da República em missões oficiais.
Foram ouvidas, ao todo, oito pessoas: o ex-presidente; a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro; o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid; o pai dele, o general da reserva Mauro César Lourena Cid; dois assessores do ex-presidente: Marcelo Câmara e Osmar Crivellati; Frederick Wassef, que declara ser advogado do ex-presidente; e Fabio Wajngarten, ex-chefe da Comunicação do governo.
Além de Bolsonaro, Michelle, Wajngarten e Marcelo Câmara também não se pronunciaram durante o depoimento.
A defesa do ex-presidente alegou que o Supremo Tribunal Federal (STF) não tem competência para analisar o caso, que deveria ser transferido à Justiça Federal de Guarulhos, onde o primeiro kit de joias foi apreendido.
Segundo os advogados, os peticionários não prestarão depoimento ou fornecerão declarações adicionais até que estejam diante de “um juiz natural competente”.
A figura do “juiz natural” se refere ao magistrado da instância e da região na qual a defesa acredita que o caso deveria tramitar.
As alegações apresentadas pela defesa do ex-presidente giram em torno da tese de que o Supremo não tem competência para conduzir um caso envolvendo uma autoridade que perdeu a prerrogativa de foro privilegiado.
Bolsonaro perdeu seu foro privilegiado quando deixou a Presidência. Com isso, os processos criminais contra ele deveriam passar para a primeira instância judicial.
No entanto, o relator do caso, o ministro Alexandre de Moraes, alega que há conexão com outras investigações que tramitam na Corte e, por isso, o caso caberia ao STF.
Em entrevista ao portal Metrópoles, o procurador-geral da República, Augusto Aras, avaliou que o Supremo deverá ‘em algum momento’ decidir sobre o foro do ex-presidente e a competência da própria Corte para julgar o caso das joias.
O PGR sustentou que uma eventual decisão do STF em favor de lavar o processo para a primeira instância poderia, inclusive, resultar em anulação de provas.
Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, a questão deve ser discutida nos próximos meses pelo plenário do STF.
A ideia é que um dos integrantes da Corte peça uma questão de ordem em um julgamento que tenha a questão do foro como um ponto de divergência.
A BBC News Brasil ouviu especialistas em Direito Penal para entender se os argumentos de ambas as partes têm validade, além de como essa discussão poderia impactar o caso e as provas já coletadas.
O caso deve ficar no STF?
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal decidiu reduzir o alcance do foro privilegiado de deputados e senadores somente para aqueles processos sobre crimes ocorridos durante o mandato e relacionados ao exercício do cargo.
O entendimento também se estendeu a outras autoridades, como ministros e o próprio presidente da República.
Dessa forma, entendeu-se que só ficariam na Corte as ações criminais que envolvessem crimes cometidos durante o mandato e relacionados ao cargo.
Por esse entendimento, Bolsonaro não possui mais foro e, segundo alguns especialistas, por isso seu caso deveria ser remetido à primeira instância.
Entretanto, não há um consenso entre os juristas da área sobre a questão. O próprio argumento dos advogados do ex-presidente sobre a competência do STF já foi apresentado à Justiça e refutado pela primeira instância.
Moraes afirma que a Polícia Federal suspeita de uma atuação criminosa que envolveria não só o uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens, como ataques virtuais a opositores, ao Poder Judiciário e ao processo eleitoral, tentativa de golpe de Estado e boicote à vacina durante a pandemia de covid-19.
Tudo isso conectaria o inquérito das joias a outros casos já comandados pelo ministro no STF, como o das milícias digitais.
Para Edson Knippel, advogado criminalista e professor da Faculdade de Direito do Mackenzie, o caso está sendo conduzido de maneira correta pelo Supremo.
“Esse fato, relativo às joias, tem relação com outros fatos que são de apuração do STF. Se fosse um fato isolado teríamos possibilidade de pensar no deslocamento de competência, mas no contexto atual não”, diz.
De acordo com o especialista, há principalmente uma conexão entre os agentes envolvidos no caso e outros inquéritos.
“Mas há também uma questão diplomática envolvida e autoridades estrangeiras.”
Já Davi Tangerino, professor de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), não vê conexões suficientes que justifiquem a permanência do caso no Supremo.
“Esse caso não deveria ser conduzido pelo Supremo”, afirmou à BBC News Brasil.
“Não tem nenhuma autoridade com prerrogativa de foro no Supremo e, pelo menos por enquanto, não há uma conexão direta com o 8 de janeiro, que é o que justifica os inquéritos originários”.
Segundo o advogado, o simples fato dos “personagens” envolvidos em diferentes casos julgados pelo ministro Alexandre de Moraes serem os mesmos não é motivo suficiente para afirmar a conexão.
“Existe conexão quando os elementos do crime em si estão conectados.”
Qual pode ser o impacto de uma decisão?
Ambos os especialistas concordam, porém, que é improvável que o Supremo Federal decida em favor do encaminhamento do caso à primeira instância.
Mas na eventualidade do STF decidir que o caso é, de fato, competência da primeira instância, os especialistas afirmam que há a possibilidade de anulação das provas.
As evidências afetadas seriam aquelas produzidas a partir de decisão judicial, como, por exemplo, as que foram obtidas após autorização para quebra de sigilo.
“Na hipótese de baixar para a primeira instância, caberá ao novo juiz validar ou não o que já foi produzido”, diz Davi Tangerino. “Via de regra, as provas que não dependem de decisão judicial não ficam contaminadas porque mudou o foro.”
Ainda segundo o advogado, nessas circunstâncias o caso voltaria à Justiça Federal de Guarulhos, onde as joias sauditas recebidas pela comitiva do ex-presidente foram retidas no aeroporto.
Edson Knippel, porém, lembra que a Justiça de Guarulhos já enviou a investigação ao STF. A transferência foi realizada a pedido do Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo no início de agosto.
“Ou seja, Guarulhos já declinou da competência”, diz.
O caso
De acordo com a PF, Bolsonaro, assim como outros investigados, são suspeitos de “desviar presentes de alto valor recebidos em razão do cargo pelo ex-Presidente da República e/ou por comitivas do governo brasileiro, que estavam atuando em seu nome, em viagens internacionais, entregues por autoridades estrangeiras, para posteriormente serem vendidos no exterior”.
A investigação apontou, além disso, que os montantes obtidos com essas vendas eram convertidos em dinheiro em espécie e ingressavam no patrimônio pessoal do ex-presidente por meio de intermediários e sem utilizar o sistema bancário formal, supostamente visando ocultar a origem, localização e propriedade dos valores.
Entretanto, a PF ainda está na fase de investigações, sem notícias de indiciamentos no caso.
Procurada pela reportagem com pedidos de informações, a polícia afirmou que “não se manifesta sobre investigações em andamento, nem sobre eventuais depoimentos”.
No centro da disputa está o entendimento de qual deveria ser o destino dos presentes dados por autoridades estrangeiras.
Por lei, objetos recebidos devem ser incorporados ao acervo da Presidência da República, ou seja, são bens públicos e não pessoais.
Uma exceção são itens considerados “personalíssimos”, como roupas, perfumes e alimentos.
A defesa de Bolsonaro tem sustentado que os presentes em questão eram, sim, personalíssimos.
Enquanto isso, em março, o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Bruno Dantas, se pronunciou sobre o caso, contrariando a versão da defesa.
“De acordo com a jurisprudência desta Corte de Contas desde 2016, para que um presente possa ser incorporado ao patrimônio pessoal da autoridade é necessário atender a um binômio: uso personalíssimo, como uma camisa de futebol, e um baixo valor monetário.”
A BBC News Brasil pediu posicionamento, mas não teve retorno da defesa de Jair Bolsonaro e de Michelle Bolsonaro; o escritório que defende Mauro Cesar Barbosa Cid e Mauro Cesar Lourena Cid afirmou que não iria se posicionar. A reportagem não conseguiu contato com Frederick Wassef e Fabio Wajngarten.