O fascínio e a repulsa pela China que atravessam história do Brasil
- Author, Daniel Salomão Roque
- Role, De São Paulo para a BBC News Brasil
No livro Cartas de um Chinês do Brasil para a China, publicado em 1923, um certo Ho He Dgent discorre sobre os programas de saúde e segurança pública então vigentes em nosso país: “Gastam aqui os governantes dinheiro a rodo sem conta, para evitar que epidemias matem a gente e a população se desfalque. Por isso, há comissões de médicos zelosos e de muito saber, que vacinam, dão injeções, fazem discursos, aconselham”.
Essa guerra contra a morte, porém, ocultaria objetivos menos nobres. “O governo assim o faz para que a gente viva até cansar, pagando sempre tributo, procriando sem medida”, afirma o autor, ferrenho crítico da classe política, a quem acusa de negligenciar um problema ainda mais grave: “Esta moléstia, qual é? O revólver assassino! Essa é a maior pandemia que ceifa as vidas brasileiras”.
Ho He Dgent seria um repórter, correspondente internacional do Tomh-Ha-Pao e do Shanghaian Times, duas publicações chinesas sobre as quais até hoje nada se sabe: “O autor das aludidas cartas conhece sobejamente as coisas do Brasil, e as observa desde há muito”, declara Simão de Mantua, suposto tradutor, nas primeiras páginas do livro. “Não pode, pois, ser um diplomata em missão rápida e passageira pelo nosso país, como a princípio se supôs”.
Mantua é uma figura igualmente nebulosa — trata-se de um pseudônimo atribuído a pelo menos duas personalidades da época, o jornalista João de Sousa Lage e o engenheiro Antônio Gomes do Carmo.
O mesmo não se pode dizer sobre o homem que publicou a obra — ninguém menos que Monteiro Lobato, no início de sua carreira de editor. Cartas de um Chinês do Brasil para a China era o primeiro volume de uma coleção intitulada Elementos para o Estudo da Psicologia Social Brasileira, e seu conteúdo oscila entre a paródia e a farsa.
“O livro foi escrito já no período republicano”, conta o historiador André Bueno, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). “Ele integra um conjunto mais amplo de eventos, em que olhamos para a Ásia como um espelho distante. Nesse caso específico, alguém teve a ideia de satirizar a política brasileira, e para isso criou uma identidade falsa, um contraponto imaginário, especulando como a nossa realidade se desnudaria aos olhos de um oriental, e como este relataria aos conterrâneos aquilo que vê”.
A obra, hoje esquecida, dialogava às avessas com um ramo específico das ciências humanas — a sinologia, sobre a qual Bueno se debruça há três décadas. “Trata-se do estudo das coisas chinesas”, explica ele. “Noutras palavras, uma tentativa de se entender a China pela China, através de suas fontes, sua literatura, suas tradições culturais”.
É uma disciplina ainda cercada por lacunas e incompreensões, mesmo entre profissionais de História: “Nosso currículo acadêmico se mostra bastante atrasado”, lamenta Bueno. “Frequentemente nos perdemos com utopias de retrovisor. Os historiadores querem andar para frente, mas estão sempre olhando para trás, numa total incapacidade de ler o mundo para além das próprias limitações. Ao esnobar a Ásia e a África, ignoram a trajetória de dois terços da população mundial”.
Pelo menos 4,5 bilhões de pessoas vivem no continente asiático, segundo estimativas da ONU — e sobre esse grupo, cada vez mais numeroso, depositamos nossos próprios anseios: “O imaginário ocidental se alimenta de um fascínio místico pelo Oriente”, afirma o pesquisador. “Tudo que escapa à nossa tradição é visto como miragem esotérica. O povo adora yoga, acha que tudo se resolve com acupuntura ou tai chi chuan, acredita que na China todo mundo é mais espiritual”.
Ao mesmo tempo, apontam especialistas, o país se encontra no epicentro do chamado “perigo amarelo” — o estereótipo do asiático como entidade maligna que ameaça a sobrevivência do Ocidente.
“O brasileiro vive dizendo que bandido bom é bandido morto, mas acusa os chineses de crueldade por balearem prisioneiros em estádios”, observa Bueno. “Como tudo por aqui ultimamente, esse debate contraditório se polariza entre sinófilos e sinófobos, os que amam e os que odeiam”.
Foi a partir do século 19 que as polêmicas sobre o tema se intensificaram no país: “Com o surgimento do coronavírus, diálogos daquela época passaram a se repetir por aqui”, afirma Kamila Czepula, doutoranda em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). “Com espanto, vi falas aparentemente extintas, que eu havia examinado em documentos centenários, ressurgirem em nossos espaços cotidianos, como o metrô. Ouvi muitas senhorinhas dizendo que os chineses são sujos e transmitem doenças, que eles comem qualquer coisa e se multiplicam feito bichos para devastar nossa nação”.
A pesquisadora acredita que tais discursos sinalizam mais do que uma lacuna acadêmica: “Para além da falta de estudo, há uma maquiagem”, diz. “O Brasil se vende como uma terra acolhedora, respeitadora da diversidade etnocultural, mas qualquer chuva tira esse verniz da nossa cara, revelando traços que escondemos desde sempre”.
Entre o ópio e a escravidão
O crescimento populacional assombra a China há pelo menos três séculos. Estima-se que, em 1700, o território do país abrigava 150 milhões de pessoas. Cem anos depois, esse número dobraria. Em 1850, triplicou.
Uma forte onda migratória se delineava naqueles tempos. As terras cultiváveis tornaram-se escassas, e as necessidades da produção agrícola não superavam as barreiras tecnológicas. A oferta de alimentos caiu — e os preços, consequentemente, elevaram-se.
Outros fatores agravariam o cenário: uma sucessão de catástrofes naturais, com enchentes se intercalando a períodos de seca, e o assédio da Grã-Bretanha, então detentora da maior força naval do mundo.
Os ingleses acossavam a dinastia Qing (1644-1912) com exigências diversas, sobretudo a abertura dos portos e a negociação de tratados econômicos. Com a recusa da China em atender a esses privilégios, a Grã-Bretanha intensificou o tráfico de ópio no país asiático — ao mesmo tempo em que pressionava parceiros comerciais pelo fim da escravidão africana.
Assim, uma demanda surgia no horizonte — a busca por uma nova fonte de mão de obra, capaz de suprir o mercado europeu e suas colônias. Os chineses, então chamados de coolies ou chins, logo foram vistos como substitutos ideais para os negros, alimentando uma lucrativa rede de exploração que se disseminou pela costa da Ásia.
Sob o comando de empresários britânicos, agências de recrutamento se estabeleceriam nos portos de Macau e Hong Kong, aliciando com falsas promessas os trabalhadores locais — e, não raras vezes, recorrendo a sequestros.
Após a captura, os chineses permaneciam nus, junto a centenas de outras vítimas, em barracões desprovidos de qualquer infraestrutura — a água era escassa, e a alimentação, precária. Quando finalmente adentravam os navios, eram submetidos a torturas e castigos físicos — estima-se que até 40% da tripulação morria ao longo do trajeto, frequentemente por tifo ou suicídio.
“Eclodiram inúmeras denúncias expondo essas situações em cenário mundial”, explica Czepula. “Falava-se no surgimento de uma nova escravidão amarela. E, de fato, o cenário era análogo ao dos navios negreiros. Isso gerou um enorme constrangimento, por tudo o que ocorria debaixo dos panos — afinal, os ingleses pressionavam aqui, mas escravizavam acolá. A sociedade vinha se empenhando em discussões sobre a natureza do trabalho, e esse tipo de violência já não era tão aceita como anteriormente”.
E o Brasil?
Em 4 de setembro de 1850, o governo imperial promulgou a Lei Eusébio de Queirós, criminalizando o ingresso de escravizados no Brasil. Ao longo das décadas seguintes, preocupações econômicas levariam políticos, fazendeiros e intelectuais a se embrenharem no mesmo debate que movimentava a Inglaterra: como substituir a mão de obra negra?
A influência das teorias raciais estrangeiras, que associavam o continente africano ao atraso e à inferioridade, culminou na rejeição do próprio trabalhador nacional, visto como indolente e pouco disciplinado. A saída, acreditava-se, estaria na contratação de brancos europeus — estes, porém, preferiam migrar para territórios como a Argentina ou os EUA, cujos climas eram mais próximos aos dos seus países de origem.
Em 1879, na Assembleia da Província de São Paulo, o parlamentar Ulhoa Cintra sugeriu uma alternativa: o emprego de chineses na lavoura cafeeira, como solução intermediária na transição do trabalho escravo para o livre. O projeto, logo colocado em pauta na Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro, ganhou destaque nacional. De acordo com seus defensores, a população do país asiático se caracterizaria pela obediência e servilidade.
“Muitos desses políticos eram grandes fazendeiros”, afirma Czepula. “Estavam interessados em mão de obra barata e acreditavam que os chineses não mudariam as estruturas do status quo brasileiro. Os críticos da imigração chinesa, por sua vez, utilizaram isso como estratégia combativa, alegando que a vinda desses trabalhadores representaria uma nova escravidão”.
Joaquim Nabuco, membro do Partido Liberal e figura histórica do abolicionismo, era um dos maiores detratores do projeto, qualificando-o como uma tentativa de “mongolizar” a pátria:
“Mas, sendo os chins reclamados pela lavoura, serão eles convenientes?”, discursou o deputado. “Não, por muitos motivos. Etnologicamente, porque vêm criar um conflito de raças e degradar as existentes no país. Economicamente, porque não resolvem o problema da falta de braços. Moralmente, porque vêm introduzir em nossa sociedade essa lepra de vícios que infesta todas as cidades onde a imigração chinesa se estabelece”.
Para André Bueno, tais polêmicas reservam uma certa dose de atualidade: “Eram mundos que não conseguiam dialogar”, sustenta o historiador. “Como é que você elabora imagens identitárias de um mesmo povo a partir de duas matrizes tão diferentes? No século 19, esses estereótipos tinham como base uma ideia em comum, segundo a qual as culturas seriam um desdobramento de caracteres étnico-genéticos. Por mais ultrapassadas que sejam essas ideias, ainda há quem acredite nelas”.
As culturas se encontram
As informações que os brasileiros dispunham sobre o gigante asiático pautavam-se apenas em fontes externas — livros franceses, principalmente. No rastro dos debates imigratórios, esse quadro se reverteu: João Sinimbu, ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, aprovou então a primeira viagem oficial do país ao território chinês.
A missão, liderada por Eduardo Callado e Artur Silveira da Mota, teve início em 1879 e se estendeu pelo ano seguinte, quando os tripulantes desembarcaram na Ásia para encontrar Li Hongzhang, vice-rei do império chinês. Henrique Lisboa, diplomata residente na Espanha, havia se juntado à comitiva durante sua passagem pela Europa, tornando-se o secretário-geral do grupo. Fascinado pelo que viu, ele registraria seus pensamentos no livro A China e os Chins (1888), tido como o marco inicial da sinologia brasileira.
“Naquela época, percebemos que havia uma enorme lacuna ao redor da China, um abismo separando o que sabíamos e aquilo que a China de fato era”, afirma Bueno. “O diferencial de Lisboa era que ele, ao contrário de todos os outros, tinha ido até lá. Ele dedicou-se à observação antropológica do mundo chinês, e com isso obteve avanços importantíssimos. Seu trabalho é um esforço fabuloso de diálogo intercultural”.
O exame da vida cotidiana atravessa boa parte da obra. Ao debruçar-se sobre as especificidades de cada região, Lisboa esboça um vasto panorama das tradições locais e questiona algumas práticas do Ocidente, como a insistência em classificar os habitantes da China como pertencentes à raça mongólica.
“Essa é, mesmo, a opinião mais vulgarizada e de que os adversários da imigração chinesa no Brasil não duvidam tirar partido, acenando ao patriotismo o perigo da nossa futura mongolização”, diz o autor. “Não sei, realmente, qual seja a origem de tão crasso erro; talvez a casualidade de ter Marco Polo visitado a China e dado as primeiras notícias circunstanciadas daquele império justamente na curta época em que achava-se ele submetido aos descendentes mongóis de Gengis Khan”.
Lisboa também se dedica a desconstruir estereótipos negativos sobre o povo chinês, como a suposta ignorância e a alardeada dependência química.
“Muito se tem exagerado sobre o uso do ópio na China”, atesta. “Pode-se comparar o seu abuso ao vício da embriaguez entre os ocidentais; geralmente reprovado, apenas afeta esse vício uma parte relativamente diminuta da população. O ópio ainda está menos generalizado na China do que as bebidas alcoólicas no Ocidente, e os ébrios inveterados são, entre algumas raças europeias, muito mais numerosas do que os que chegam, na China, ao estado de bestialidade a que conduz o abuso daquela droga”.
Lisboa destaca, igualmente, um dos grandes feitos do país asiático — a construção de uma das maiores redes escolares do mundo: “Não há, com efeito, aldeia por mais insignificante que não tenha a sua escola”, diz. “Não houve necessidade na China de decretar o ensino obrigatório; ali, envergonham-se os pais de que seus filhos não saibam tanto ou mais do que eles”.
Seus diagnósticos foram altamente favoráveis à vinda dos trabalhadores chineses: “Entre a viagem e a publicação do livro, oito anos se passam”, afirma Bueno. “Nesse intervalo, ele participa de debates públicos, escreve em diversos jornais e dissemina os conhecimentos adquiridos na missão diplomática, tornando-se uma autoridade em questões orientais”.
Em 1897, Lisboa foi enviado ao Japão, onde atuaria como cônsul até 1900. No dia 15 de agosto daquele mesmo ano, ocorreu a chegada oficial dos primeiros imigrantes chineses a São Paulo — o grupo, formado por 107 pessoas, vinha do Rio de Janeiro, a bordo de um navio português. Desde 2018, com a sanção da Lei 13.686/2018, a data é celebrada anualmente como o Dia Nacional da Imigração Chinesa no Brasil.