A escola britânica centenária em que alunos decidem regras e o que querem estudar
- Author, Paula Rosas
- Role, Enviada especial de BBC Mundo a Suffolk, Reino Unido
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Ben não queria tirar o pijama. Há dias, ele dormia e, depois, brincava no jardim, na cama elástica ou subia em árvores, com a mesma roupa de dormir.
Ben havia acabado de entrar na escola Summerhill, um centenário internato britânico que permite que as crianças estabeleçam suas próprias normas. Por isso, ninguém podia obrigá-lo a tomar banho ou trocar de roupa.
Os dias passavam e Ben ficava cada vez mais sujo. Até que seus colegas chegaram ao limite. Eles levaram o caso à assembleia semanal, que decide democraticamente tudo o que acontece na escola.
A assembleia decidiu que Ben não poderia continuar assim. Surgiu então uma nova regra que seria acrescentada às cerca de 400 normas que regem o internato: a regra do pijama.
Ben podia passar o dia todo de pijama? A assembleia decidiu que sim. Mas, à noite, ele precisaria trocar de roupa e vestir outro pijama.
Assim é Summerhill, a escola onde as crianças têm a liberdade de estabelecer suas próprias normas e não é obrigatório assistir às aulas.
Fundada em 1921 pelo educador escocês Alexander Sutherland Neill (1883-1973), Summerhill baseia-se na premissa “freedom but not licence” (“liberdade, mas não licença”, em inglês). E, cem anos depois, muitos ainda consideram que esta filosofia é um experimento radical.
Segundo ela, as crianças devem ter liberdade para fazer o que desejarem, desde que não interfira na liberdade dos demais. Isso inclui a liberdade de aprender o que quiserem, quando e como quiserem.
São 10h30 da manhã de uma sexta-feira de junho. As crianças da Classe 2, que recebe estudantes com 10 a 12 anos, são uma boa amostra dessa independência.
Está na hora da oficina de redação, que tem nove crianças inscritas, mas só há uma aluna em aula com a professora. Outros três estudantes jogam Banco Imobiliário na sala comum e uma quarta, confortavelmente instalada em uma poltrona e imersa em um livro, apenas levanta os olhos quando os visitantes entram no salão.
No lado de fora, o sol brilha pela primeira vez em muitos meses. As crianças logo trocam as cartas do jogo por saltos e piruetas na cama elástica no jardim.
“No início do trimestre, você indica as aulas de que gosta, mas depois é livre para ir ou não”, explica Latisha, há nove anos no colégio. Ela entrou com sete anos.
Ela e seu irmão são a segunda geração de estudantes de Summerhill da mesma família. Seu pai, Adrian, também passou a infância na escola. Ele gostou tanto que matriculou seus filhos.
“Depois, ele foi para a universidade e se dedicou aos negócios”, conta a menina, que quer seguir os passos do pai.
“Muita gente pensa que todos nós de Summerhill queremos nos dedicar a atividades artísticas, mas não é verdade. Eu mesma, na verdade, não tenho muito jeito”, confessa Latisha.
Ambiente internacional
Latisha — ou Tisha, como todos a chamam — faz parte do grupo de 60 estudantes de Summerhill. Eles têm entre 5 e 17 anos.
Um cartaz na entrada da escola — uma mansão vitoriana de tijolos vermelhos, revestida de pedra — recebe os visitantes com a mensagem “Beware! Children playing!” (“Atenção! Crianças brincando!”, em inglês).
Ao lado de diversas construções anexas que servem de dormitórios e oficinas, a escola se estende por quase cinco hectares de jardins e bosques, na região de Suffolk, no leste da Inglaterra.
Todos os alunos convivem em regime de internato, exceto as crianças menores. A escola custa entre 10 mil e 23 mil libras (cerca de R$ 60 mil a R$ 140 mil) por ano. São valores impeditivos para muitas famílias, mas bem abaixo de muitos internatos britânicos.
Atualmente, mais de um terço dos estudantes vem do exterior. Eles são de países como China, Japão, Polônia ou, no caso de Tisha, Alemanha.
A escola não obedece ao currículo nacional e as crianças não são divididas em cursos, como nas escolas britânicas convencionais.
Também não há exames em Summerhill, mas a escola prepara os alunos com 15 e 16 anos que desejarem prestar as provas para o Certificado Geral de Educação Secundária (GCSE, na sigla em inglês), exigido no Reino Unido para ingressar na educação superior.
Quando os estudantes completam 12 ou 13 anos, um orientador os ajuda a formar o caminho a ser percorrido depois que eles saírem de Summerhill.
“Se uma criança quiser ser, por exemplo, cientista espacial quando for maior de idade, nós nos asseguramos de oferecer todas as opções e bases para que ela possa seguir este caminho”, afirma o subdiretor da escola, Henry Readhead, à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC). “Por isso, para nós, é muito importante ter as qualificações.”
Edie, Joe e Iris — esta, vestida com um enorme roupão de pelúcia rosa — estão se preparando para o exame de Matemática em uma das aulas, com música ao fundo. Os três alunos têm 16 anos e precisam passar no GCSE de matemática para os estudos que querem cursar posteriormente.
“Vocês gostam?”, pergunta a reportagem.
“Mmm…”, os três se entreolham e caem na risada.
Benji tem 10 anos e também está escrito em Matemática. “Às vezes, vou à aula”, confessa ele.
Sua grande paixão é a oficina de carpintaria, onde está construindo uma vassoura voadora. Ele já conseguiu esculpir e envernizar o cabo, que exibe com orgulho. Depois, irá colocar as cerdas.
Ele ainda não pensou em como irá fazer a vassoura voar, mas diz que terá alguma ideia a respeito.
Benji chegou a Summerhill há poucos meses. Ele veio de uma escola convencional onde, segundo ele, algumas crianças riam dele porque, às vezes, gagueja.
“Aqui, sinto que posso me expressar melhor e, além disso, ninguém me força a aprender, faço o que mais gosto”, explica Benji. Ele mostra uma varinha mágica que acabou de colar e está secando na janela.
Na aula de Música, Sure toca no baixo uma canção que ele próprio compôs com seu pai, Warabe, que canta e toca guitarra. Warabe também foi aluno da escola nos anos 1980. Os dois formaram um grupo, chamado Peasoup.
As estantes da sala misturam discos de Bach com The Cure. É um dos locais favoritos de Sure.
Warabe trabalha no setor de informática, mas a Música, que ele descobriu em Summerhill, é sua paixão até hoje. De vez em quando, ele passa algumas semanas na escola.
A poucos metros dali, o professor Steven lê em voz alta um trecho do romance Holes (“Buracos”, Ed. Martins Fontes), do escritor americano Louis Sachar. Sua voz profunda e pausada tem efeito sedante sobre as crianças da Classe 3, que o ouvem com atenção.
Steven foi diretor de uma escola estatal por 30 anos. Apaixonado pelo magistério, ele entrou em Summerhill quando se aposentou.
Pedagogia livre
Diferentemente de outros métodos pedagógicos alternativos, como Montessori ou Waldorf, o ensino em Summerhill, de alguma forma, é convencional.
“Quando [os alunos] decidem finalmente aprender e ir para a aula, eles vão com motivação, com entusiasmo e não precisam que o professor facilite ou enfeite [a matéria]”, conta o subdiretor. “De fato, tivemos o caso de um professor que trouxe um método alternativo e as crianças disseram: ‘você pode simplesmente nos ensinar?'”
Readhead é neto do fundador da escola, Alexander Sutherland Neill.
Entre o grande público, é possível que Summerhill seja menos conhecida do que outros internatos britânicos famosos e mais aristocráticos, como o Eton College, por exemplo.
Mas a aposta de A. S. Neill teve grande influência sobre as chamadas pedagogias “livres”, especialmente nas décadas de 1960 e 1970. E Summerhill também é pioneira no modelo de escola democrática.
Gerações de professores de todo o mundo estudaram ou, pelo menos, ouviram falar de Summerhill — incluindo a professora mexicana Montserrat Mejía Ortiz, que se apaixonou pela filosofia de A. S. Neill quando era estudante de pedagogia.
Montse, como todos a chamam, chegou à escola em 2015. Ela explica que o modelo ensina as crianças “a serem responsáveis pelo próprio aprendizado, pelos resultados e pela própria vida”.
Ela conta que, aqui, as desculpas não funcionam — “se fui reprovada, não foi porque o professor fez alguma coisa; fui reprovada porque não estudei, porque não fui às aulas”.
A professora começou em Summerhill como houseparent, uma função que ela descreve como “ser a mãe das crianças internas. Em caso de emergência física ou emocional, você está ali para cuidar delas.”
Desta função, Mejía Ortiz passou a lecionar para a Classe 1, que recebe crianças de cinco a nove anos. Ela também dá aulas de espanhol para os alunos que querem aprender o idioma, como Catherine, de cinco anos.
“Ela veio para mim depois de ver Encanto [o desenho da Disney, de 2021]”, conta a professora à BBC News Mundo.
O que mais a agrada em Summerhill é que a escola não impõe às crianças expectativas sobre o que elas deveriam saber em cada idade.
“Se, com oito anos, você não souber ler perfeitamente, não acontece nada, logo você irá aprender”, ela conta. “É preciso deixá-los aprender no próprio ritmo.”
Mas os inspetores de Educação do Reino Unido nem sempre concordaram com esta visão. A escola esteve a ponto de ser fechada em 1999, quando a inspeção estatal quis forçar a escola a ter aulas obrigatórias. E também afirmou que o internato deveria ter banheiros separados para meninos e meninas.
O caso chegou à Justiça. Se fosse avaliada segundo os mesmos padrões das escolas convencionais, Summerhill seria considerada um desastre.
Mas a escola conseguiu convencer os juízes de que as inspeções deveriam ser feitas considerando valores e filosofia própria. E, desde então, o internato não enfrentou mais problemas.
“Meu avô acreditava que era importante criar uma escola que se ajustasse às crianças e não fazer com que as crianças se adaptassem à escola”, explica Henry Readhead. “Ele acreditava que as crianças têm direito a uma infância plena e feliz.”
Segundo esta filosofia, é importante liberar as crianças das expectativas impostas pela educação convencional, pelos pais ou pela sociedade “para que elas possam seguir suas próprias motivações, sejam autônomas e tomem suas decisões a respeito da comunidade em que vivem e da educação que recebem”, afirma o subdiretor.
Nico, por exemplo, é um menino espanhol com 17 anos que cursa o colégio desde os 11 anos. Ele é apaixonado pelo trabalho de ferreiro.
Na oficina, ele nos mostra uma faca que ele mesmo fez. “A folha é de aço de Damasco e tem forma de pluma”, explica ele, com orgulho. É uma verdadeira obra de arte.
Ele quer se dedicar a este trabalho e já encontrou uma escola para continuar sua formação.
“Nico terá as qualificações necessárias para entrar no instituto, mas existem outras 99 qualificações que não são necessárias”, explica Readhead. “É um tempo que ele pode passar na oficina, fazendo aquilo de que gosta.”
Mas alguns veem problemas na ideia de que as crianças escolham seu próprio currículo e estudem apenas o que elas quiserem.
É difícil saber se alguém gosta de algo sem ter tido contato com aquilo “e, frequentemente, existem coisas de que não gostamos porque não tivemos sucesso com elas, mais do que por qualquer outra razão”, afirma à BBC News Mundo o professor de educação e valores Nigel Fancourt, da Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Segundo o acadêmico, existem certas coisas que precisamos saber, gostemos ou não. “Precisamos também aprender a conseguir fazer as coisas que não são fáceis para nós”, acrescenta ele.
Nesta mesma linha, a doutora em educação e psicologia Catherine L’Ecuyer defende que este tipo de pedagogia concentrada no interesse das crianças pode acabar sendo uma trava para elas, já que, “ao limitar a criança ao seu campo de conhecimento — que é praticamente nulo, pois a criança nasce sem saber nada —, o que você está fazendo é eliminar oportunidades de aprendizado”.
A assembleia
São três horas da tarde — hora da assembleia, que é o pilar que sustenta o modelo de convivência em Summerhill.
Nela, a voz de todos tem o mesmo peso. O voto de uma criança de cinco anos tem o mesmo peso do voto da diretora.
A assembleia é o tribunal da escola. Nela, todos são juízes.
É ali que se solicitará permissão, por exemplo, para passar o fim de semana na casa de um parente ou para saltar na cama elástica com uma amiga, como pede hoje uma menina de cerca de 12 anos. Em Summerhill, apenas as crianças menores podem usar a cama elástica em grupo, por questão de segurança.
A assembleia também trata das brigas entre os colegas e define os planos para a próxima festa da escola.
Alba, por exemplo, tem nove anos. Ela conta que pretende levar à assembleia suas amigas Bee e Catherine. Ela afirma que as meninas “riram da forma como me visto”.
Alba é charmosa e gosta de usar delineador nos cílios e brilho labial. Hoje, ela está usando uma camiseta curta. “Gosto de me vestir assim e não me importa o que os outros pensam”, ela conta.
Tisha explica que a assembleia oferece às crianças a confiança necessária para dizer o que pensam e fazer valer suas opiniões.
Ela não lembra exatamente qual foi o primeiro assunto que levou à assembleia, quando entrou no colégio, com sete anos. “Não era nada grave, mas para mim parecia importante”, ela conta.
Mas Tisha se lembra bem de como se sentiu. “Apesar de ser tão pequena, senti que tinha toda a comunidade me apoiando, foi uma sensação incrível”, relembra ela.
Como em qualquer outra escola, Summerhill não está livre dos casos de assédio escolar, embora eles não sejam muito frequentes em uma comunidade tão pequena e restrita.
Mas o que talvez seja um diferencial em relação aos outros centros é que, aqui, todos os integrantes do colégio — alunos, professores e administradores — participam de cada assunto e procuram soluções.
Na assembleia de hoje, não é discutido nenhum caso de assédio, mas Nico apresenta à reunião o caso de uma colega que, muitas vezes, fica preguiçosamente na cama na hora de levantar-se pela manhã.
Existe muita liberdade em Summerhill, mas também há certos horários que devem ser respeitados porque foram definidos em assembleia.
O café da manhã, por exemplo, vai das 8h às 8h45 da manhã. Às 8h30, todos devem estar vestidos. Caso contrário, os beddies officers — “policiais da cama”, crianças maiores que cuidam para que todos se deitem e se levantem nos horários definidos — podem impor uma multa.
A punição pode ser, por exemplo, 10% do pagamento semanal (cada criança recebe aos sábados uma quantia que varia em função da idade) ou uma multa em forma de trabalho — talvez um período de tarefas comunitárias na escola, como ajudar o jardineiro ou recolher o lixo.
Na assembleia de hoje, muitos levantam a mão para opinar sobre o caso da colega dorminhoca e decidir em conjunto qual será o seu castigo.
Um propõe que ela deva lavar os pratos de uma refeição. Outro, que precise levantar-se no dia seguinte às sete horas da manhã para dar um passeio.
“Mas amanhã é sábado”, lembra outra criança. “Se ela se levantar às sete, vai acordar os demais.”
Por fim, todos votam e decidem que o castigo mais justo é uma “multa média de trabalho”: 40 minutos de tarefas comunitárias.
E, é claro, a assembleia também decidiu pelo voto — mesmo com a discordância de vários professores — que a cama elástica é mais divertida quando saltamos com a nossa melhor amiga. De forma que, sim, o pedido está aprovado!
Para Henry Readhead, é fundamental que as crianças vivam em um ambiente igualitário com os adultos à sua volta.
“Mais do que perguntar por que os votos de todos têm o mesmo valor, a pergunta deveria ser: ‘por que não?'”, defende ele. “As crianças deveriam ter os mesmos direitos que nós na hora de tomar este tipo de decisão.”
A autorregulamentação fez, por exemplo, com que eles próprios decidissem proibir o uso de telas — incluindo as redes sociais dos celulares dos adolescentes — antes das quatro horas da tarde.
Mejía Ortiz explica que, por algum tempo, foi permitido que as crianças jogassem videogame ou usassem as telas no horário e pelo tempo que desejassem.
Até que um menino de nove anos acabou levando a questão para a assembleia, depois de perceber que precisava que alguém lhe dissesse quando deveria parar. Ele ficava o tempo todo em frente ao computador e se esquecia até de comer.
“Isso ter vindo deles é o máximo, é um assunto que discutimos muito durante a assembleia”, comenta a professora.
A assembleia termina e o jardim está novamente repleto de crianças brincando.
“Aqui, queremos celebrar a infância como um período essencial para os seres humanos”, resume Readhead. “E não é só uma ideia de A. S. Neill, é uma ideia para a humanidade.”