Por que alguns prédios ficam despejando água limpa nas ruas?
Dois canos à beira da calçada jorram água cristalina em abundância durante horas ao lado do Platina 220, o prédio mais alto de São Paulo, localizado no bairro do Tatuapé, na Zona Leste.
De vez em quando, a água dá uma trégua, mas logo volta “a cachoeira”, como moradores da região batizaram a situação.
Por onde a água passa, o asfalto está visivelmente deteriorado pelo fluxo constante.
“Pode fazer sol ou chuva, a rua quase sempre está molhada”, diz um vizinho do prédio, que diz morar na região há 40 anos e pediu para não ser identificado.
Ele conta como isso tem causado transtornos a quem vive ali: “Aqui do lado, tem uma clínica de fisioterapia onde vão muitos idosos que usam andadores e cadeira de rodas. Eles sempre precisam atravessar esse rio de água na valeta. Deveriam armazenar essa água e usar ou oferecer para alguém, um lava-rápido”.
Quem vive em grandes cidades, onde é comum haver edifícios com subsolos, já deve ter visto cenas parecidas.
Apenas na capital paulista, a reportagem da BBC News Brasil presenciou dezenas de outros edifícios que despejam água limpa na rua em grande quantidade, em diferentes partes da cidade.
Mas por que esses prédios jogam tanta água fora? De onde ela vem e o que poderia ser feito com ela?
A BBC News Brasil entrevistou especialistas em hidrologia e procurou o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) do Estado de São Paulo para responder a essas questões.
Segundo eles, trata-se de uma situação bastante recorrente em todo o país e que surge quando os prédios são construídos. A água poderia até ser aproveitada, mas isso exigiria uma autorização do órgão responsável em cada Estado.
Essa permissão segue no entanto um processo burocrático e moroso, o que pode levar muitos edifícios a simplesmente decidir que é melhor despejar tudo na sarjeta de uma vez.
A Porte Engenharia e Urbanismo, que construiu o Platina 220, disse à BBC News Brasil que “segue rigorosamente as diretrizes estabelecidas pelo Código de Obras e Edificações de São Paulo”.
“A água interceptada do lençol freático superficial é imprópria para consumo, sendo lançada na sarjeta para captação no sistema de microdrenagem do município, cumprindo o ciclo hidrológico e seguindo estritamente as normas da legislação vigente”, disse a Porte em nota.
No entanto, a empresa não respondeu ao questionamento da reportagem se foi pedida uma autorização para uso da água.
A Porte afirmou que “não há registro de reclamações da vizinhança sobre eventuais transtornos causados pelo empreendimento” e disse que mantém aberto um canal de relacionamento com os vizinhos “para promover melhorias e bem-estar aos moradores da região”.
Procurada, a administradora do prédio, a Innova, também disse que segue a legislação vigente e que não há “registros de reclamações sobre eventuais transtornos causados pelo edifício”.
A empresa também não informou se solicitou a outorga para usar a água do lençol freático.
De onde vem a água?
A raiz do problema está literalmente sob a terra, e tudo começa logo quando um edifício é construído, explica Ricardo Hirata, professor de Geociências e Recursos Hidro subterrâneos na Universidade de São Paulo (USP).
O hidrólogo diz que essa situação ocorre geralmente quando é feito um rebaixamento do solo para a construção dos andares que ficam sob a superfície da terra.
Se a fundação atinge um lençol freático, produz uma vazão constante de água, que precisa então ser bombeada para evitar que um prédio inunde.
“Na capital paulista e na região metropolitana, temos o aquífero São Paulo. Na região central, ele é poroso, com areia e arenito. E, se você cavar a partir de três metros (de profundidade), encontra água nele”, diz o professor.
Anderson Paiva, professor de engenharia civil na área de recursos hídricos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), afirma que isso acontece em cidades de todo o país, especialmente onde há prédios altos com garagens no subsolo.
No entanto, Paiva afirma que isso é menos comum em cidades como o Recife, onde os engenheiros costumam já fazer as garagens acima do nível do solo para evitar inundações.
“Até temos prédios aqui que chegaram nesse nível e precisam bombear água, principalmente hotéis e prédios em áreas nobres. Mas, como temos muitos alagamentos, é mais comum que as garagens sejam acima do nível da rua e, dessa forma, não atingimos o lençol freático”, relata o engenheiro.
Ele afirma que o principal cuidado quando é feito o rebaixamento do solo é impermeabilizar para evitar o contato da água com a alvenaria.
“A água consegue ter uma capilaridade por meio dos microporos do tijolo, o que pode causar umidade e comprometer a estrutura. O ideal é que a água entre em contato apenas com estruturas de concreto, que não tem essa porosidade do tijolo”, afirma.
O professor da UFPE afirma não ser possível estimar quanta água é bombeada do solo em geral por prédios assim, porque seria preciso calcular a vazão, a potência do maquinário e quanto tempo elas passam ligadas diariamente, caso a caso.
A situação se complica de verdade quando uma construtora ou a administração de um edifício precisa dar um destino para toda essa água.
A água poderia ser em tese aproveitada por prédios, mas algumas complicações tornam mais fácil mandar tudo para a sarjeta.
O primeiro ponto é preciso ter uma autorização para usar essa água. Uma outorga é emitida para o órgão responsável por regular a água e esgoto do Estado, como o DAEE em São Paulo, a Cedae, no Rio de Janeiro, e o Seia, na Bahia.
“Os pedidos são analisados caso a caso, levando-se em conta as especificidades do uso e da finalidade da demanda”, informou o DAEE por meio de nota.
Mas Hirata explica que os órgãos podem com frequência demorar para emitir a autorização, porque ainda não estão plenamente acostumados a lidar com essas solicitações.
“Se você pede para tirar água do rio, o Estado sabe fazer isso de maneira ágil. Mas quando você vem com alternativas diferentes, ele se embaralha porque não tem essa prática”, diz.
Prédios que usam este tipo de água sem pedir permissão podem ser multados e, inclusive, responder por crime ambiental.
Para quem não tem autorização de uso, a recomendação oficial é despejar na rua, o que não exige nenhum tipo de outorga.
Outro ponto importante é que essa água não serve para beber, porque a cor cristalina da água não garante que seja potável, como explica o DAEE.
Mesmo assim, poderia ter outras finalidades, diz Hirata, que deu uma palestra neste ano sobre o assunto na Faculdade de Hiroshima, no Japão.
“Ela pode ser aproveitada para rega, lavagem ou até mesmo na prumada da descarga dos banheiros. Não existe restrição, desde que não seja usada de maneira potável”, diz o hidrólogo.
Normalmente, recomenda-se que a água seja tingida para deixar claro que é de reuso, segundo Hirata.
“No shopping Eldorado, em São Paulo, a descarga tem água azul. Isso porque eles pegam água do esgoto, a tratam e tornam apta a outros usos. E eles usam um corante alimentício para que os funcionários não se atrapalhem”, explica.
No entanto, o especialista ressalta que, mesmo para um uso não potável, é necessário fazer um estudo dessa água antes de usá-la.
Segundo Hirata, isso é importante porque, essa água pode ter algum contaminante, que pode causar problemas de saúde ao entrar em contato com a pele, ou doença respiratória, porque algumas destas substâncias podem ser voláteis.
Anderson Paiva, da UFPE, alerta ainda que a água do lençol freático de cidades litorâneas tem outra questão importante que existe o tratamento.
“Você pode até retirar a água, mas, além dos contaminantes, é possível que ela tenha alta concentração salina”, diz.
Hirata alerta que, mesmo com a autorização, é necessário fazer análises periódicas da água. Por estar mais próxima à superfície, ela pode se contaminar com facilidade. Por isso, o especialista reforça que não é recomendado bebê-la.
Qual o impacto desse ‘desperdício’?
Hirata afirma que o uso dessa água pode não causar grandes problemas no reservatório subterrâneo de onde ela sai, porque ele acaba sendo constantemente “recarregado”.
“A cidade impermeabiliza o solo, principalmente com concreto e asfalto. No entanto, a rede de distribuição de água tem vazamentos ao longo do caminho até nossas casas e essa água para em algum lugar. Normalmente, ela vai para o aquífero. Então, você não perde ela completamente, e alguém que cava um poço pode usá-la”, afirma o hidrólogo.
Hirata também explica que a água da chuva também alimenta esse aquífero superficial após infiltrar no solo. Depois de cair nessa rede subterrânea, ela se desloca até chegar a um rio. O professor estima que entre 30 a 40% da água da capital paulista é subterrânea, por isso os rios não secam durante o período de estiagem.
No entanto, quando a água é retirada abundantemente e sem controle de pontos mais profundos, com mais de 150 metros de profundidade, isso pode ter um grande impacto, segundo o hidrólogo.
“Quando tira muita água profunda, tem mais problema porque os aquíferos funcionam como descargas no rio em todo o percurso dele. Se tirarmos muita água dos poços, essa descarga diminui e o rio pode secar, o que chamamos de superexplotação”, diz.
Ele cita como exemplo o aquífero Ogallala, nos Estados Unidos, que secou após ser usado de maneira excessiva por fazendeiros do meio-oeste do país.
Por isso o órgão responsável faz uma análise do quanto de água é retirada, para entender o impacto que ela causará.
Para o professor, o Estado deveria ter programas de conscientização para estimular o aproveitamento dessa água, que acaba sendo desperdiçada diariamente por prédios no país inteiro.
“O futuro das cidades passará por reconhecer o uso dessas águas. Isso é um benefício para o usuário e para a sociedade, principalmente quem mora na periferia e sofre com constantes racionamentos”, diz Hirata.
“A cidade moderna vai fazer mais uso desse tipo de água porque não podemos depender da água potável para lavar carro e regar jardim.”