Com mais de 10 cotações, entenda como a Argentina consagrou o 'dólar blue' em vez do câmbio oficial


Esse tipo de negociação se tornou popular por conta da facilidade de realizar a troca nas bancas de jornais, nos restaurantes, nos hotéis, nas lojas, até mesmo com taxistas.
Gustavo Garello / AP Photo
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Ainda no caminho de tentar conter a saída de dólares do país, o ministro da Economia da Argentina, Sergio Massa, anunciou nesta semana a criação de mais uma cotação para o dólar: o “vaca muerta”.
A nova cotação tenta estancar a saída de dólares do país, aproveitando o momento de exportações recordes de petróleo e gás. Os insumos são produzidos no polo de Vaca Muerta, de onde saiu o nome da nova cotação. (saiba mais no fim da reportagem)
Em meio a uma severa crise financeira, a Argentina tem mais de uma dúzia de cotações de câmbio vigentes no país. Com uma taxa de inflação na casa dos 120% no acumulado de 12 meses, muitos argentinos priorizam o uso do dólar, que é uma moeda mais estável e valorizada.
O problema é que o governo não tem reservas suficientes para atender toda a demanda e impôs um limite de compra de US$ 200 ao mês por pessoa, reduzindo ainda mais a oferta.
E, assim, criou-se a principal cotação paralela: com as restrições, a população passou a comprar e vender dólar por meios não oficiais, baseando o valor das negociações em uma cotação ilegal e que foge da fiscalização do estado, conhecida como “dólar blue”.0
Mas a crise é tamanha que também há várias outras cotações não oficiais, criadas para situações específicas, como foi o caso do dólar vaca muerta.
Na época da Copa do Mundo de Futebol, o próprio governo criou o “dólar Catar”, cotação aplicada em cartões de crédito para turistas que fossem curtir o mundial. No mesmo período, foi criado o “dólar Coldplay”, uma variante para a contratação de atrações internacionais para shows dentro do país.
Os problemas com a moeda argentina são a origem de uma das principais propostas de Javier Milei, candidato de extrema-direita e líder da corrida eleitoral no país. Ele propõe que a economia argentina seja inteiramente dolarizada, para frear a inflação galopante no país e encerrar as cotações paralelas. (veja também adiante)
O g1 conversou com especialistas em economia internacional para entender melhor sobre o que é o dólar blue, como ele é negociado e como surgem tantas cotações malucas no país vizinho.
Você verá nesta reportagem:
O que é o dólar blue e a diferença do câmbio oficial argentino?
Como o dólar blue é negociado?
O que fez a Argentina chegar a essa crise?
Quais riscos o país poderia enfrentar caso fosse dolarizado?
‘Vaca muerta’, a nova cotação para o dólar
O que é ‘dólar blue’ e a qual a diferença para o câmbio oficial? 🤔
O dólar blue tem uma dinâmica semelhante a qualquer taxa de câmbio: tem seu preço, que varia todos os dias, e as devidas regras de negociação. A diferença para o câmbio oficial é, justamente, a forma como a cotação da moeda é definida, segundo a professora Cristina Helena Pinto de Mello, da PUC-SP.
A cotação oficial é definida com base na conversão de uma moeda estrangeira para o peso, feita por instituições regulamentadas pelo Banco Central da Argentina. Já o dólar blue tem seu preço definido por instituições não regulamentadas, que vendem a moeda pelo preço que quiserem, a depender da procura.
➡️ Além do dólar blue, a Argentina possui mais de 10 outras cotações para o dólar, criadas com o objetivo de tentar conter a saída de moeda do país — além de estimular a entrada.
Veja as principais cotações, baseadas no câmbio desta quinta-feira (28):
dólar mayorista (atacado): cotado a $ 350,03, é destinado a importadores e bancos que desejam realizar transações no exterior;
dólar tarjeta (cartão): cotado a $ 639,62, é usado para pagamentos de serviços em dólares (como assinaturas da Netflix ou Amazon), ou compras no exterior. Caso o valor seja inferior a U$ 300, há uma taxa de 75% sobre o valor da compra;
dólar turista (ou Catar): cotado a $ 659,93, é destinado aos viajantes argentinos que realizam compras no exterior com cartão de crédito ou débito. Caso a transação ultrapasse U$ 300 no período de um mês, será necessário pagar uma taxa de 100% sobre o valor da compra;
dólar MEP (ou dólar bolsa): cotado a $ 689,85, vale para a compra e venda de títulos públicos e ações. Os títulos precisam ser cotados tanto em peso, quanto em dólar. Eles são comprados em moeda local e vendidos no exterior;
dólar ‘contado com liquidação’ (CCL): cotado a $ 794,40, é semelhante ao dólar MEP, entretanto, os dólares são depositados no exterior. Essa é uma forma legal de tirar dólares da Argentina;
dólar vaca muerta: destinada ao setor de petróleo e gás e entrará em vigor a partir de 1 de outubro. Ele usará a mesma cotação do ‘dólar CCL’.
Mas como é feita essa média? As cotações são divulgadas no final do dia anterior ou na manhã do dia em questão. O preço é calculado pela média de tudo o que é vendido pelas casas de câmbio naquele dia. As pessoas acabam acompanhando essa referência para tentar encontrar a melhor opção.
Como o dólar blue é negociado e quais são os riscos? 💵
Na Argentina, por ser uma transação extraoficial, é possível negociar o “dólar blue” nas bancas de jornais, nos restaurantes, nos hotéis, nas lojas, até mesmo com taxistas ou qualquer pessoa que tenha posse da moeda americana.
Os estabelecimentos que fazem esse tipo de negociação são chamados de “cuevas” e concentram a sua maior parte na rua Flórida, em Buenos Aires.
“O dólar blue é um mercado paralelo ilegal, que foge à margem da fiscalização do Banco Central argentino, que não tem rastreabilidade. De onde vieram esses dólares? Eles vêm do crime, do tráfico, da sonegação, da lavagem de dinheiro”, afirma a economista da FGV, Carla Beni.
“Esse mercado é um mercado paralelo, que não tem regulamentação, não tem como reclamar e tem uma quantidade enorme de notas falsas”, diz.
Além disso, o preço do dólar blue está mais sujeito a variações, já que, quem faz a negociação, tem a liberdade de escolher o valor que quer vender.
O que fez a Argentina chegar nessa crise? 😬
Podemos dizer que o que fez a Argentina chegar nessa crise foi o desequilíbrio na balança de pagamentos.
O que isso quer dizer? A Argentina importou mais do que exportou, ou seja, gastou mais do que arrecadou em moeda estrangeira. Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec), as exportações da Argentina tiveram queda de 10,9% no segundo trimestre deste ano em relação ao mesmo período do ano anterior, enquanto as importações subiram 4,3%.
Para tentar arcar com as suas dívidas primárias, o país:
passou a imprimir mais pesos (a moeda nacional); e
fez empréstimos de altos valores com credores internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI).
E por que isso é ruim?
quando um país coloca mais moeda em circulação, aumenta a pressão no consumo e desregula relação entre oferta e demanda dentro do país. Por conta disso, os preços podem subir, reforçando a inflação que já é alta; e
a Argentina pegou dinheiro emprestado com instituições financeiras e não pagou, fez sucessivos acordos com o FMI e não cumpriu. A pouca reserva de dólares é a principal causa para que a Argentina não cumpra com os seus compromissos internacionais, o que diminui a confiança internacional com o país, afastando os investidores e financiadores.
“Depois de vários calotes com credores internacionais, não tem mais oferta de crédito. Então, o jeito para honrar as contas do dia a dia é emitindo moeda. Isso gera inflação”, explica o professor de economia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Josilmar Cordenonssi.
Quais riscos o país poderia enfrentar caso fosse dolarizado? 💵
Trocar a moeda de um país não é tão simples quanto parece. Entretanto, o tema ficou no centro das atenções durante as eleições primárias da Argentina em agosto, após o candidato de extrema-direita, Javier Milei, sugerir a dolarização da economia e o fechamento do Banco Central do país.
Na Argentina, a população recebe o salário em pesos e — com a inflação descontrolada e a moeda local desvalorizada — busca uma garantia comprando e reservando dólares.
Segundo os especialistas ouvidos pelo g1, para a Argentina trocar o peso pelo dólar como moeda oficial, o país precisaria ter ao menos reserva internacional suficiente para garantir que a população tenha acesso a moeda americana em um primeiro momento, o que não acontece na prática.
Mesmo que a Argentina passasse a usar o dólar como moeda oficial, haveria uma consequência importante: o país dependeria da Casa da Moeda americana para importação da moeda. Além disso, ficaria dependente das decisões de juros do Federal Reserve, o banco central americano.
Por conta disso, o país perderia a sua autonomia como uma nação independente e estaria sujeita a política monetária dos Estados Unidos.
De acordo com a professora Cristina Helena, da PUC-SP, há duas maneiras para que a Argentina possa ter acesso a dólares: ou o Fed compra pesos argentinos ou títulos da dívida do país.
“Para entregar dólares para Argentina, o Fed teria que aceitar o peso, que quase não tem valor. Por que o Fed compraria o peso?”, pergunta. “A outra alternativa seria comprar títulos da dívida da Argentina, que não está sendo paga. Estão fazendo negociação em cima de negociação. Por que o BC americano compraria títulos da Argentina?”
‘Vaca muerta’, a nova cotação para o dólar
A nova cotação foi anunciada na última quarta-feira (27) e poderá ser usada a partir de 1 de outubro, para facilitar as exportações de petróleo e gás. Ela ficará em vigor até o dia 25 do mesmo mês, com a possibilidade de ser prorrogada até 25 de novembro.
Essa taxa de câmbio é destinada para o setor de petróleo e gás e seguirá a mesma cotação do ‘dólar CCL’ – atualmente cotado a $ 794,40, segundo o jornal “La Nación”.
Nesse período, as empresas do setor poderão negociar 25% das exportações de petróleo e gás por meio dessa nova cotação. Vale lembrar que o governo cria cotações com o intuito de reter a saída de dólar do país e, consequentemente, estimular a sua entrada.
* Estagiário sob supervisão de Raphael Martins

Fonte: G1

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